Por Diego Ferreira - Especial MOSTRA CURA.*
Fonte de inspiração na esfera artístico-literária, a cebola metaforiza
não só as camadas de memória, mas também fases da vida e, de certa forma, o
próprio sujeito como ser sociocultural e historicamente situado que se
constitui nas relações intersubjetivas e dialógicas. Percebe-se, ainda, que
essas camadas também se presentificam nos discursos que emergem nas distintas
esferas da atividade humana — sejam eles em linguagem verbal, sejam em não
verbal como as imagens propostas no ensaio, justamente por serem multiformes os
usos da linguagem; ou seja, entretecidos por uma multiplicidade de ‘camadas’. A
cebola configura-se como um convite ao espectador a desvelar a outra face da
existência das coisas, haja vista seus sentidos situarem-se “além dos limites
da própria cultura”. Valéria Barcellos alcança, com efeito, uma amplitude e
profundidade em seu discurso espetacular.
“Ensaio sobre a cebola” trás a multiartista Valéria Barcellos num solo
que se utiliza da metáfora da cebola enquanto elemento de construção de uma
narrativa ácida que combina textualidades que vai descascando a cebola ao mesmo
tempo em que vai desvelando histórias e marcas que confundem vida e arte da
performer. Primeiramente preciso destacar o texto da própria Valéria que
consegue mergulhar profundamente em temas que provocam um estranhamento na
sociedade. Valéria se revela uma dramaturga com uma potencia reveladora. Sua
escrita se situa no que diz Conceição Evaristo, enquanto escrevivência, uma
escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da
própria autora e isso de fato está presente em seu ensaio.
Uma mulher.
Uma mulher negra.
Uma mulher trans negra.
Uma cebola.
Um ensaio.
Extremamente inteligente a relação metafórica que consegue criar
relacionando suas experiências com uma cebola. Um tubérculo. Casca. Camadas e mais
camadas. Cinco camadas. E o que isso provoca: cheiro, acidez, gosto. Exótico.
Indigesto. Alguns gostam, outros não. Uns comem. Outros não.
Ela afirma: “eu sou o caos” e a partir disso discorre de forma
contundente sobre preconceitos, racismo, gênero, sexualidade entre tantos
outros temas sem em momento nenhum resvalar em tom didático ou panfletário,
pelo contrário, constrói um ensaio crítico e revelador sobre a humanidade por
trás do preconceito. Nomes, nomenclaturas, categorias. Tentativas de
encaixotar. Categorizar. Diminuir. Esvaziar. Relativizar. Esconder. Extinguir.
Combater.
Camadas e mais camadas.
As pessoas só vêem o que querem ver.
As pessoas só vêem o que querem ver.
As pessoas só vêem o que querem ver.
E o que você quer ver?
De que forma a presença de Valeria te atravessa?
O que de fato eu e você apreendemos desta experiência?
Camadas e mais camadas.
Sensações
Revolta
Dor
Corpo negro
Valéria Barcellos é uma verdadeira potência e constrói a partir dessa
performance uma arquitetura que mescla ficção, fricção e realidades. E isso é
muito bom. Meu desejo é que esta cebola alcance o maior número de pessoas
possíveis e faça chorar através de sua acidez, mas também faça repensar nossa
postura diante de tantas atrocidades que são acometidos esses corpos negros,
esses corpos trans, esses corpos femininos.
Direção:Valéria
Barcellos
Autoria:Valéria
Barcellos
Elenco / performer:Valéria
Barcellos
Iluminação:Equipe
Piquet Coelho
Trilha Sonora:Valéria
Barcellos
Figurino:Jeffe
Souza
Duração:60
minutos
Classificação: 16
anos
*Diego Ferreira é
Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante
da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante
do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones
Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos
de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.