terça-feira, 8 de dezembro de 2020

ENSAIO SOBRE A CEBOLA (RS) - CRÍTICA



Por Diego Ferreira - Especial MOSTRA CURA.*

Fonte de inspiração na esfera artístico-literária, a cebola metaforiza não só as camadas de memória, mas também fases da vida e, de certa forma, o próprio sujeito como ser sociocultural e historicamente situado que se constitui nas relações intersubjetivas e dialógicas. Percebe-se, ainda, que essas camadas também se presentificam nos discursos que emergem nas distintas esferas da atividade humana — sejam eles em linguagem verbal, sejam em não verbal como as imagens propostas no ensaio, justamente por serem multiformes os usos da linguagem; ou seja, entretecidos por uma multiplicidade de ‘camadas’. A cebola configura-se como um convite ao espectador a desvelar a outra face da existência das coisas, haja vista seus sentidos situarem-se “além dos limites da própria cultura”. Valéria Barcellos alcança, com efeito, uma amplitude e profundidade em seu discurso espetacular.

“Ensaio sobre a cebola” trás a multiartista Valéria Barcellos num solo que se utiliza da metáfora da cebola enquanto elemento de construção de uma narrativa ácida que combina textualidades que vai descascando a cebola ao mesmo tempo em que vai desvelando histórias e marcas que confundem vida e arte da performer. Primeiramente preciso destacar o texto da própria Valéria que consegue mergulhar profundamente em temas que provocam um estranhamento na sociedade. Valéria se revela uma dramaturga com uma potencia reveladora. Sua escrita se situa no que diz Conceição Evaristo, enquanto escrevivência, uma escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da própria autora e isso de fato está presente em seu ensaio.

Uma mulher.

Uma mulher negra.

Uma mulher trans negra.

Uma cebola.

Um ensaio.

Extremamente inteligente a relação metafórica que consegue criar relacionando suas experiências com uma cebola. Um tubérculo. Casca. Camadas e mais camadas. Cinco camadas. E o que isso provoca: cheiro, acidez, gosto. Exótico. Indigesto. Alguns gostam, outros não. Uns comem. Outros não.

Ela afirma: “eu sou o caos” e a partir disso discorre de forma contundente sobre preconceitos, racismo, gênero, sexualidade entre tantos outros temas sem em momento nenhum resvalar em tom didático ou panfletário, pelo contrário, constrói um ensaio crítico e revelador sobre a humanidade por trás do preconceito. Nomes, nomenclaturas, categorias. Tentativas de encaixotar. Categorizar. Diminuir. Esvaziar. Relativizar. Esconder. Extinguir. Combater.

Camadas e mais camadas.

As pessoas só vêem o que querem ver. 

As pessoas só vêem o que querem ver. 

As pessoas só vêem o que querem ver. 

E o que você quer ver?

De que forma a presença de Valeria te atravessa?

O que de fato eu e você apreendemos desta experiência?

Camadas e mais camadas.

Sensações

Revolta

Dor

Corpo negro

Valéria Barcellos é uma verdadeira potência e constrói a partir dessa performance uma arquitetura que mescla ficção, fricção e realidades. E isso é muito bom. Meu desejo é que esta cebola alcance o maior número de pessoas possíveis e faça chorar através de sua acidez, mas também faça repensar nossa postura diante de tantas atrocidades que são acometidos esses corpos negros, esses corpos trans, esses corpos femininos.

 

 

Direção:Valéria Barcellos

Autoria:Valéria Barcellos

Elenco / performer:Valéria Barcellos

Iluminação:Equipe Piquet Coelho

Trilha Sonora:Valéria Barcellos

Figurino:Jeffe Souza

Duração:60 minutos

Classificação: 16 anos

 

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.