terça-feira, 30 de julho de 2019

HISTÓRIA DO FUTURO (RS)


TRABALHO PROVOCANTE SOBRE UM PAÍS DO FUTURO

por Diego Ferreira*

O espetáculo "História do Futuro" coloca em cena uma adaptação do texto de Antonio Vieira escrito a mais de 300 anos e que prevê a ideia de um país do futuro. Diria que o texto e a própria encenação vem muito a calhar diante de todas as situações que estamos vivenciando num Brasil que está mergulhado em incertezas políticas e o contexto da obra, que é muito atual dialoga diretamente com tudo isso. 
Provocação é a palavra que melhor se encaixa em relação ao trabalho apresentado, pois diante de todas as soluções estéticas apresentadas me senti extremamente provocado, através do texto que consegue ampliar a noção de construção de um país, sua formação, sua gente e cores, sua derrocada a partir da corrupção e a partir disso, sua reconstrução através da ética empregada em suas relações com suas mazelas. Me senti provocado com a própria encenação com direção de Eduardo Severino que é artista da dança e estreia na direção teatral, e carrega em uma direção contemporânea, articulando novos padrões de encenação, requisitando do espectador uma percepção centrada nas sensações, ora desconstruindo a fábula e evitando qualquer significado racional, ora centrado na experiência estética provocado pelas ótimas projeções mapeadas de Jana Castoldi que tornam a experiência prazerosa pela qualidade e apuro estético. Severino  a partir de suas experiências consegue criar um espetáculo que coloca em cena um ator que está extremamente seguro em cena, um corpo que é expressivo, que é minimalista e que tem domínio de seus movimentos, e que tudo que está colocado ali tem um sentido. Caco Coelho está excelente em cena, dono de si e com uma potência que eu não estava acostumado, pois conhecíamos seu trabalho como produtor e diretor, um verdadeiro batalhador das artes da cidade, sendo o projeto Usina das Artes um grande exemplo. Mas o lado ator de Caco estava adormecido e nesta oportunidade é desvelada e merece nosso destaque pela qualidade e apropriação do texto de Antônio Vieira. Um ator exercitando sua plenitude em cena. Mas os méritos da produção não cessam por aqui, pois além da qualidade de Severino e Caco Coelho, destaco também as participações em vídeo de Lima Duarte que dialoga e interfere na cena diretamente e sua participação é fundamental para o desenvolvimento da obra. Cabe citar a trilha sonora de Renato Velho e Driko Oliveira que é pontual e totalmente dentro da proposta da encenação, assim como a iluminação de Guto Greca e Eduardo Kramer que conseguem dialogar com as projeções, com o cenário e com as cenas que o ator faz na platéia, que aliás são muito boas quebrando a quarta parede e aproximando o espectador ao trabalho. 
"História do Futuro" é um espetáculo que tem muitas camadas e que merece ser visto e revisto pela capacidade que tem de dialogar com questões do nosso tempo e que se utiliza de uma estética apurada para falar sobre um Brasil possível. Produção impecável de Gisela Sparremberger que precisa urgentemente ser assistida. 



FICHA TÉCNICA:
Supervisao: Vera Holtz
Direção: Eduardo Severino
Roteiro e Interpretação: Caco Coelho
Produção e Assessoria de Imprensa: Tradeberger Cultural / Gisela Sparremberger
Projeção Mapeada: Jana Castoldi
Participação em Audiovisual: Lima Duarte
Luz: Guto Greca e Eduardo Kramer
Trilha Sonora: Renato Velho e Driko Oliveira
Coordenação Técnica: Gabriel Coelho
Vídeo: Fernando Piccoli
Figurino: Mariane Collovini
Voz: Lígia Motta
Acompanhamento Psicopedagogo: Clarissa Candiota
Fotografia: Taís Regina Palhares

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

domingo, 28 de julho de 2019

ÁS VEZES EU KAHLO (RS)


HUMANIDADE DE FRIDA EM ESPETÁCULO DETALHISTA 

por Diego Ferreira*

Se fizermos uma pesquisa rápida sobre a obra de Frida Kahlo o que mais nos chama a atenção são as cores vibrantes e a energia do povo mexicano em suas roupas, adereços e pinturas. O que a GEDA Cia. de Dança nos apresenta é uma obra coreográfica que escolhe acertadamente outros caminhos a partir da imagem forte da mulher revolucionária, mas que aqui nesta obra conhecemos o outro lado desta mesma artista, que se tornou um icone pop através de uma grande apropriação de suas imagens que são vendidas e produzidas em camisetas, bolsas e objetos.   No espetáculo o lado fragilizado, suas dores e transgressões emocionais são o ponto de partida para a construção de um trabalho que é extremamente detalhista. Suas cores dão espaço ao luto, os pincéis são transformados em muletas e assim entre agressões físicas, mutilações, quedas e tropeços o trabalho exalta com grande qualidade toda a potencialidade humana de Frida. 
Mais uma vez Maria Waleska e sua GEDA nos brinda com um espetáculo que é extremamente contemporâneo e técnico, mas que em nenhum momento se perde em coreografias gratuitas ou que primam apenas pela virtuose dos bailarinos, muito pelo contrário, o espetáculo é extremamente rigoroso e pega o espectador pela capacidade que tem em emocionar. É carne exposta se materializando em pequenos espasmos, pequenos lutos de uma mulher forte, mas que aqui mostra suas fraquezas. 
Graziela Silveira está simplesmente maravilhosa neste solo que tem a participação como bailarina dublê de Clarissa Gomes. Graziela tem uma força e entrega que faz deste trabalho uma referência em dança contemporânea. A bailarina através do seu corpo cria um verdadeiro manifesto surrealista, um corpo que aos pedaços vai se recompondo e montando partes de sua vida. E o corpo de Graziela expandido no tempo-espaço é revelado em fluxo de vida/morte entre sutilezas e explosões num espaço atemporal. A obra tem grande dramaticidade revelada através de todas as escolhas estéticas como o cenário, a trilha sonora, as belas projeções e a iluminação que convergem todas para um mesmo sentido que é a de entregar um trabalho extremamente meticuloso e de grande qualidade dirigidos pela Maria Waleska van Helden que sem sombra de dúvidas pode ser considerada patrimônio da dança pelos trabalhos prestados e não apenas isso, pela trajetória sim, mas principalmente pela qualidade de suas escolhas. 


Ficha Técnica “Às Vezes, eu Kahlo

Concepção, Coreografia e Direção Geral: Maria Waleska van Helden

Dramaturgia do Corpo: Denis Gosch

Técnica do Movimento: Luciana Dariano

Bailarina-intérprete: Graziela Silveira

Trilha Sonora Original e Operação de Som: Vitório O. Azevedo

Participação Especial: Giovanni Capeletti

Desenho e Operação de Luz: Carol Zimmer

Criação e Projeção de Vídeos: Fernando Muniz e Paula Pinheiro

Cenógrafo e Figurinista: Antonio Rabadan

Pesquisa: Maria Waleska van Helden e Consuelo Vallandro

Texto: Consuelo Vallandro

Fotografia: Sabrina van Helden

Voz em off: Arlete Cunha

Assessoria de Comunicação: Silvia Abreu Consultoria Integrada de Marketing

Produção Executiva: Ana Paula Reis / Bendita Cultura

Realização: Kapsula Produções Culturais

Agradecimentos: Equipe da Casa de Cultura Mario Quintana


Classificação 12 anos

Duração: 40 min



*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

quinta-feira, 11 de julho de 2019

EXPEDIÇÃO MONSTRO (RS)


OLHAR CUIDADOSO  PARA UM MUNDO MULTIFACETADO DAS CRIANÇAS 


por Diego Ferreira*


"Expedição Monstro" é um espetáculo teatral infantil que se utiliza de temas ludicos para tratar de preservação da natureza e na esteira consegue abordar outros temas pertinentes aos pequenos como imaginação, enfrentamento dos medos, respeito as diferenças e o convívio em coletividade. A começar pela personagem feminina que gosta de ser chamada de Jadyson, demonstrando que não gosta de ser menina, assim como ocorre no livro "A bolsa amarela" de Lygia Bojunga, em que a personagem não gosta de ser menina e gostaria de ser menino. Temas pertinentes e que merecem ser abordados no teatro dirigido as crianças. 
Com dramaturgia e direção de Matheus Melchionna o espetáculo vai na contramão do estigma de que teatro infantil é uma arte menor, pois a produção além de ter um caráter pedagógico, tem alto apelo estético e grande força na interpretação de todo elenco. Melchionna consegue articular os elementos cenográficos, texto e atores para construir uma fábula que tem todos os elementos do bom teatro infantil. Quatro crianças se unem em prol de uma expedição pela floresta, no meio da tal expedição ocorrem alguns fatos que modificam o rumo da mesma e surgem na história monstros que vão fazer as crianças a repensarem suas atitudes e seus medos. Basicamente o texto trata disso, mas a delícia está justamente no modo como cada personagem é apresentado. Desta forma todo o elenco está ótimo em cena, destacando os interpretes dos monstros Danuta Zaghetto e Ander Belotto que constroem figuras que inventam uma língua nova e que são carismáticas e engraçadas. Considero Danuta uma das melhores atrizes do teatro gaúcho atual pelos seus espetáculos, tanto os dirigidos a infância quanto os dirigidos ao público adulto. Os demais atores também merecem destaque pela sua construção e naturalidade como representam as crianças. 
Merece destaque a arte gráfica do espetáculo de Suzana Witt pois é de uma delicadeza e consegue retratar as personagens no cartaz e em toda a identidade visual do trabalho. O cenário também é um destaque e está totalmente dentro da proposta pois se utiliza de muitas garrafas pets que são transformadas e ressignificadas em peças cenográficas que com a utilização da iluminação dá um tom especial a parte estética do espetáculo.  
A produção não menospreza a inteligência das crianças e através de sua narrativa desperta no espectador uma curiosidade em saber o que vai acontecer com os personagens.
Com este trabalho, a Cia. Indeterminada cativa a todos sem medo de ousar, oferecendo um olhar cuidadoso para o mundo multifacetado das crianças de hoje. Um espetáculo que trata de temas relacionados a natureza, mas não resvala em clichês ou pedagogias chatas, pois por trás do tema tem uma história muito bem articulada que se sustenta do início ao fim, assim como nosso interesse que se renova do início ao final do espetáculo. Um belo recorte do teatro infantil da capital.



FICHA TECNICA 

Ficha Técnica:

Elenco: Ana Caroline de David, Ander Belotto, Bruna Casali, Danuta Zaghetto, Lauro Fagundes, Maurício Schneider e Renata Stein

Direção: Matheus Melchionna

Trilha Sonora Original: Carina Levitan e Guilherme Ceron

Operação de som: Norton Goettems

Iluminação: Carol Zimmer

Cenografia:  Rita Spier, Rodolfo Ruscheinsky e grupo

Figurinos: Camila Falcão e Mari Falcão

Maquiagem: Camila Falcão

Objetos Cênicos e Máscaras: Rita Spier

Dramaturgia: Matheus Melchionna, a partir de improvisações e colaborações do grupo

Colaborações Artísticas: Patrícia Fagundes, Daniela Aquino e Gisela Habeyche

Produção: Cia. INDETERMINADA

Arte Gráfica: Suzana Witt



*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

terça-feira, 9 de julho de 2019

DAS AMARRAS DELA (RS)

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VOÔ POÉTICO E SENSORIAL SOBRE O FEMININO

por Diego Ferreira*


Amarras vem do verbo amarrar. O mesmo que:Atar, ligar, prender, segurar com amarra, corda, barbante. "Das amarras dela" enfoca o corpo feminino na dança através de um voô poético e sensorial através da dança aérea. 
O espetáculo tem uma atmosfera magnetizante pois além de colocar no centro da cena o corpo feminino nos induz a questionar sobre o corpo como elemento que constitui o circo e a dança, e sobre sua relação com o desempenho do artista dentro da concepção do espetáculo.
Como espectador penso que para obter os resultados, precisa de perseverança, ritmo, força, coragem, alegria, coordenação, auto-imagem, auto-disciplina, auto-confiança e segurança; e resulta ainda mais complexa, pensado que estas são apenas algumas das qualidades que se relacionam com processos de cada indivíduo, e depois com os processos coletivos.
No palco os bailarinos nos entregam mais do que um corpo físico,  pois através das suas amarradas coreografias nos apresentam o corpo simbólico, o corpo mental, o corpo político, o corpo histórico;  e isso me leva a considerar o corpo que realiza atividade circense como um “corpo em estado de presença” o qual desenvolve uma prática não identificável com as outras artes, apesar de ter relação com todas: com teatro por toda a concepção do espetáculo e da cena, com a dança pelo caráter corporal e o movimento que permeia o espetáculo circense, com a música pelo ritmo que a constitui a base de todas as técnicas circenses, com as artes plásticas pelo conteúdo e pela construção de imagens e emoções. 
O espetáculo é uma suspensão poética, que retira o espectador do seu cotidiano para nos colocar literalmente nas alturas, buscando sempre superar limites dos corpos dos interpretes. 
Saí do teatro extremamente extasiado com a proposta do Circo Híbrido de construir um espetáculo que consegue traçar uma metáfora inteligente sobre o feminino presente na cena contemporânea. 

Ficha técnica:
Concepção, Direção e Orientação Coreográfica: Tainá Borges e Lara Rocho;
Elenco: Tainá Borges, Lara Rocho, Maílson Fantinel, Simone Balestro, Liss Larissa Andrade, Livia Iglin, Raquel Braun, Mariana Kich e Agatha Andriola;
Iluminação: Mirco Zanini
Operação de som: Vado Vergara
Cenografia e Montagens: Luís Cocolichio
Figurinos: Clarissa Marchetti
Produção e divulgação: Circo Híbrido
Registro de Imagens: Sal Fotografia
Design Gráfico: Mônica Kern

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

domingo, 7 de julho de 2019

CÁRCERE (SP)



TEATRO ESSENCIAL COM EXCELENTE ATUAÇÃO


por Diego Ferreira

O espetáculo "Cárcere" coloca em cena um solo de Vinícius Piedade para tratar de temas como a liberdade ou a ausência dela. Com texto de Piedade e Saulo Ribeiro a dramaturgia do espetáculo narra uma semana na vida de um pianista preso que entre narrativas e delírios traz a tona suas lembranças, anseios e reflexões  através de um diário onde ele imprime tudo isso. O trabalho de Piedade é extremamente essencial, pois parte de um trabalho atoral e a partir disso consegue grande comunicação com o espectador.
Falar de sistema carcerário, prisão e tentar entender o que o preso fez para chegar aquela situação geralmente pode levar a construção de narrativas pesadas, densas e percorrer outros caminhos, mas o solo "Cárcere" parte da mesma premissa mas vai para outros lugares, pois trata de tais assuntos com uma leveza e consegue divertir o espectador, graças ao texto que foge de clichês e até mesmo de julgamentos e também por causa do ator que tem total domínio do seu instrumento de trabalho, seu corpo/voz. Seu trabalho é construído através de micropartituras físicas e vocais que revela sua capacidade de se colocar no palco sem nenhum artificio de figurino ou cenários e sustentar um trabalho longo sem ser cansativo. E isso se deve também a capacidade de comunicação com o espectador que participa ativamente, seja dialogando com seu interlocutor, ou até mesmo iluminando boa parte da cena, através da utilização de uma lanterna, literalmente iedade está nas mães da platéia, ou a platéia em suas mãos. 
Todos os méritos da produção está no modo em que Piedade se coloca diante do espectador, como uma folha em branco, como seu personagem "Ovo" cita: "a liberdade é uma folha em branco". O "Cárcere" é uma alternativa dentro deste universo de clausura, usa folhas em branco e uma lanterna, estabelece uma reflexão sem apontar o dedo em riste para ninguem, mas investe em suas próprias realidades. Vinicius Piedade está nada menos que excelente neste espetáculo, que é maduro em todos os sentidos. Um teatro minimalista que alcança grande resultado.


FICHA TÉCNICA

Direção, iluminação e atuação: 
Vinícius Piedade
Texto:
Saulo Ribeiro e Vinícius Piedade
Trilha Sonora:
Manuel Pessôa
Concepção visual:
Márcio Baptista
Figurino:
Cynthia Guedes
Fotos:
Joffre Oliveira

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

quinta-feira, 4 de julho de 2019

JUNHO: UMA AVENTURA IMAGINÁRIA (RS)


REFLEXÃO FILOSÓFICA RICA EM DETALHES DIRIGIDO AS CRIANÇAS

por Diego Ferreira*

Um espetáculo que se dispõe a trazer a literatura para a cena através de uma dramaturgia que enfoca o livro e através dele os desdobramentos para criar uma aventura cênica pode parecer um tema batido? Sim, eu disse pode, porém não é o que acontece com o excelente "Junho: Uma aventura imaginária". Com dramaturgia e direção de Thiago Silva a produção é repleta de elementos que tornam o trabalho do jovem Coletivo Nômade, um espetáculo maduro e com uma concepção rica em todos os detalhes. A começar pelo texto, e que texto senhores, pois Thiago se inspira em referências estéticas e históricas diversas, tais como o personagem Frankenstein de Mary Shelley e a história da judia Anne Frank, além dos filmes Laranja Mecânica e da estética dos programas infantis dos anos 90, para criar uma história original sobre a Família Frank. A trama do espetáculo é repleta de aventuras, mas o mais interessante é a sutileza com que são tratados temas como as diferenças em relação a sua família diferente, a criatividade e imaginação, o estímulo a leitura, o aprisionamento de conhecimento, e que podemos utilizar como metáfora atual do país, onde educação não é levada a sério. Mas o espetáculo não trata apenas disso, mas sim de uma aventura repleta de tramas que me faz recordar aquelas histórias clássicas cheias de mistérios e enigmas e que sempre são resolvidas ao final. Em seu "Junho", Thiago resgata aquele bom teatro que faz o espectador pensar e refletir a partir dos temas abordados no palco. É bom teatro por isso, por estimular no espectador a imaginação sem cair nos clichês presentes no teatro infantil e mais do que isso, um espetáculo que é rico na teatralidade da cena. 
A estética do espetáculo é um verdadeiro deleite.  Jennifer Ribeiro e Jardel Rocha são os responsáveis pela caracterização e maquiagem e alcançam um resultado surpreendente, pois não há nada fora do lugar, todos os elementos, figurinos, maquiagem, cabelos e adereços estão a serviço da cena para contar a história da família Frank. Assim como a cenografia de Roger Santos que é funcional, rica em detalhes e ainda potencializa o jogo de sombras que é um dos momentos mais belos do trabalho. Henrique Strieder também colabora criando uma iluminação poética que trabalha com cores e texturas que valorizam o cenário e os figurinos em cena, criando através da luz as dimensões espaciais que o espetáculo se propõe. E quanto ao elenco, formado por Alessandra Bier, Ana Caroline de David, Hayline Vitória, Jardel Rocha, Leonardo Steffanello, Pâmela Bratz e Roger Santos estão simplesmente irretocáveis, pois através da caracterização e do trabalho físico e vocal que cada um desenvolve, conseguem nos transportar para outras dimensões. Todos do elenco estão irretocáveis, mas preciso destacar o trabalho de Jardel Rocha como Junho e Roger Santos como Tio Cosme e Antenor, pois suas construções estão maduras e apenas um degrau acima dos demais até mesmo em função das suas personagens serem o protagonista e o vilão que é muito cômico e rico em detalhes expressionistas. 
O Coletivo Nômade merece todos os aplausos por esta produção que agrada a todos pela qualidade de todos os detalhes que fazem de "Junho: Uma aventura imaginária" um daqueles trabalhos que vão ficar guardados na memória pelo forte apelo poético, estético e imagético, mas principalmente pela qualidade dos atores e direção.   


Ficha Técnica:

Texto e Direção Teatral: Thiago Silva

Elenco: Alessandra Bier, Ana Caroline de David, Hayline Vitória, Jardel Rocha, Leonardo Steffanello, Pâmela Bratz e Roger Santos.

Trilha Sonora Original: Régis Moewius

Operação de som: Thiago Silva

Caracterização Cênica e Maquiagem: Jennifer Ribeiro e Jardel Rocha

Cenografia: Roger Santos

Cenotécnica: Roger Santos, Jardel Rocha, Mariana Silveira, Rita Spier, Thiago Silva e Jennifer Ribeiro

Figurinos: Jardel Rocha

Iluminação: Henrique Strieder

Produção: Coletivo Nômade de Teatro e Pesquisa Cênica


*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A MULHER ARRASTADA (RS)

Resultado de imagem para A MULHER ARRASTADA TEATRO

ATUAÇÃO BRILHANTE EM NARRATIVAS DE INCÔMODO 

por Diego Ferreira*


"Manifesto", é um gênero textual que consiste numa espécie de declaração formal, persuasiva e pública para a transmissão de opiniões, decisões, intenções e ideias. Normalmente de cunho político, um manifesto tem como objetivo principal expor determinado ponto de vista publicamente ou mesmo para um indivíduo ou grupo de pessoas. É considerado uma importante ferramenta democrática, pois possibilita que todo o indivíduo possa expressar publicamente o seu ponto de vista sobre determinado situação ou assunto, seja social, político, cultural ou religioso.
"A Mulher Arrastada" é apresentada como "peça-manifesto", um desabafo, um grito urgente para fazer ecoar a brutalidade ocorrida com Cláudia da Silva Ferreira, mulher negra, pobre e arrastada por policiais no Rio de Janeiro. No campo da dramaturgia, este manifesto surge para dar corpo, voz e principalmente nome a Claudia, e tudo o que vem acontecendo nos últimos tempos, com a ascensão no poder de um presidente extremamente racista e que representa e legítima parte da população que compactua com ele no que tange a discriminação racial. 
Surge também como um acalanto pós execução da Marielle. É lógico que a escrita surge muito antes deste último fato, mas serve para pensar, refletir e questionar até quando, ou melhor, quantas Cláudias, Marielles, Marias e tantas outras vão perder suas vidas e nada, absolutamente nada irá acontecer.
A escrita de Diones me toca de uma forma intensa, primeiramente, pelo fato de eu ser negro, e me identificar, mas mais do que isso, me importar e querer cada vez mais que vozes como esta ecoe e não sejam caladas, busquem o seu lugar de fala, buscando por si só o lugar de protagonismo sem a necessidade de mediação de terceiros. E segundo que a escrita é provocativa, não esbarra no fato da premissa da peça, estar em todas as mídias, o que poderia escorregar e cair em clichês ou até mesmo na criação de uma história melodramática tentando apenas emocionar o leitor/espectador com o drama da "pobre vítima" Claúdia. Mas graças ao olhar apurado, “A mulher arrastada” é um texto que a começar pela estrutura, eclode o drama assim como ocorre em autores pós-modernos, colocando em cena monólogos e vozes.
O texto é permeado de memórias fragmentárias e inconstantes, ficção e realidade andam juntas, também a dimensão do tempo está desconstruída: não há noção de passado e presente, separação de eu e outro; em caráter de hibridismo (o texto é um poema dramático, narrativo, concreto, e extremamente político, uma peça manifesto); um novo estado de expressão e percepção em uma escrita que é distante da estrutura tradicional de enredo. A fragmentação do sujeito contemporâneo é alcançada esteticamente com a utilização de recursos como as figuras do HOMEM/POLICIAL e das SOMBRAS que tem a função de situar os passos de Cláudia, a utilização de uma narrativa não linear, não especificação das personagens e do cenário, distorção do senso de realidade e de tempo. 
O trabalho de Diones é um verdadeiro “tour de force” dramatúrgico, que se materializa no espetáculo através de uma grande e competente equipe que consegue nos oferecer um trabalho de alto nível técnico e emocionante, a começar pela  interpretação irretocável de Celina Alcântara que é simplesmente arrasadora, meticulosa e espetacular. Alcança um registro que consegue dar corpo/voz a Cacau, como era conhecida Claúdia Ferreira. Impossível assistir a performance de Celina e não ser tocado, não ser perturbado pela força com que representa a personagem. Acompanho a muitos anos o trabalho de Celina, mas sem sombra de dúvida "A mulher arrastada" é daqueles personagens que vão ficar guardados na memória por muito tempo pela performance cênica, mas também pela função social e política que a obra de arte tem alcançado. Pedro Nambuco está no mesmo patamar de Celina e me assombra apenas através de sua presença, pois representa a força e a truculência policial branca. Nambuco representa um personagem que me dá asco, de certa forma, desde suas palavras iniciais, durante a violência que trata a mulher arrastada e até mesmo quando não tem falas, nem tampouco está em cena, mas apenas pelo fato de percebermos sua presença rondando o espaço como um lobo faminto. A dupla de atores está de parabéns pelo excelente trabalho. 
Assim como a direção de Adriane Mottola, que soube concatenar todos os elementos da encenação, partindo do texto de Diones, e explorando o melhor dos atores. Direção primorosa que parte de elementos simples para chegar num trabalho arrojado. Elementos como o carrinho de polícia que pode até passar despercebido, mas que dentro do contexto representa toda uma parcela de policiais que agem de forma ilegal dentro de corporações e que cometem barbáries como a relatada no espetáculo. Mottola faz um teatro essencial, um verdadeiro manifesto que é bárbaro e poético ao mesmo tempo. 
Impossível não citar a iluminação fantástica de Ricardo Vivian, que além de iluminar o espaço da cena onde os atores atuam, cria uma luz perfeita que dá conta de todo espaço, desde a entrada até atrás das arquibancadas criando um ambiente muitas vezes sufocantes, como a trilha sonora de Felipe Zancanaro que se faz presente em grande parte da cena, de forma sutil, operada ao vivo, uma experiência sonora que auxilia muito na construção emotiva do espetáculo. 
Assistir "A mulher arrastada" passa a ser uma obrigação para aqueles que gostam do bom teatro e para aqueles que precisam entender que o racismo é crime e precisa ser banido, que não pode ser tolerado, que precisa ser discutido e o espetáculo cumpre também esta função, de alargar e refletir sobre o ser negro num país extremamente racista. Que a produção possa circular por muito tempo levando a voz de Cláudia da Silva Ferreira o mais longe possível dizendo sempre: CLAUDIA DA SILVA FERREIRA: PRESENTE! 

FICHA TÉCNICA

Texto DIONES CAMARGO

Direção ADRIANE MOTTOLA
Elenco CELINA ALCÂNTARA e PEDRO NAMBUCO
Trilha Sonora Original FELIPE ZANCANARO
Iluminação RICARDO VIVIAN
Cenografia ISABEL RAMIL (ambientação cênica) e ZOÉ DEGANI (objetos cenográficos)
Fotos de Divulgação REGINA PEDUZZI PROTSKOF
Arte Gráfica JESSICA BARBOSA
Assessoria de Imprensa LAURO RAMALHO
Produção LUÍSA BARROS
Realização DIONES CAMARGO e LA PHOTO GALERIA E ESPAÇO CULTURAL
Apoio CIA. STRAVAGANZA e UTA – USINA DO TRABALHO DO ATOR

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.