Por Diego
Ferreira - Especial MOSTRA CURA*
Uma das reflexões que a
CURA me provocou ao ler seu manifesto e ver sua programação é o de perceber o
fato de o corpo negro ocupar o espaço do protagonismo na cena e ter uma mostra para chamar de sua.
Pode parecer simples, mas isso de fato é o grande diferencial e repleto de
significados, pois estamos em Porto Alegre capital do Rio Grande do Sul e isso
já diz muita coisa por se tratar de um estado colonizado e que cultua isso de forma arraigada
através de suas tradições. Estamos numa cidade onde a branquitude domina em
todos os campos e até mesmo nas artes cênicas e o corpo negro precisava de um
espaço onde fosse o centro das atenções, não por egocentrismo ou narcisismo,
mas para demarcar territórios negros num estado branco. E Gil Collares através
do seu “Encanto Zumbi” demarca um território na cena através do corpo negro
potente de seu interprete. “Encanto Zumbi” trás a cena Ganga Zumba e sua
chegada ao Brasil na condição de escravizado. Ao chegar é resgatado por negros
fugidos e levado a Palmares onde se transforma num grande líder do quilombo
transformando o espaço numa fortaleza contra os colonizadores donos de
escravos. Após sua morte, seu sobrinho Zumbi, assume o quilombo. A produção faz
esse diálogo entre Gamga Zumba e Zumbi neste formato apresentado na CURA,
sabendo que “Encanto Zumbi” na sua origem é um musical com elenco numeroso. Mas
essa experiência que assistimos num formato pocket, desvela uma justaposição de
imagens ricas potencializadas pelo câmera man, onde num primeiro momento
acompanhamos Ganga Zumba e depois Zumbi, materializados no corpo de Gil
Collares. A versão apresentada é entremeada de canções e fragmento de textos
que evocam essas figuras históricas que povoam o imaginário histórico, canções
e textos que tem como proposta revelar um episódio da história do Brasil a
partir do olhar do contestador, desconstruindo convenções tradicionais, pois
aqui Zumbi é elevado ao posto de herói, contrariando a história oficial. Evocar
Zumbi na atualidade é reafirmar o valor da história real principalmente após os
incontáveis equívocos propagados por esse governo atual principalmente na
figura de Sérgio Camargo a frente da Fundação Palmares que tem feito movimentos
gravíssimos de apagamento da memória do povo negro. Então resgatar a figura de
Zumbi é reafirmar a luta incessante pela transformação social e dignidade do
povo negro.
Gil
Collares e sua equipe conseguem provocam, mesmo que de modo virtual um
arrebatamento que chega aqui do outro lado da tela, principalmente pela
potência do corpo negro no centro da cena, assim como a profusão de imagens que
esse corpo e voz emanam na cena. Os textos e canções vêm impregnados de uma
revolta necessária para um levante que se faz urgente. Das imagens que o
trabalho propõe uma que fica para mim é das mãos negras presas por correntes e
que em seguida é libertada das correntes, um gesto simples para alguns, mas
extremamente simbólico para outros por representar a descolonização desse corpo
e de tudo que foi acometido durante todos esses anos de escravização. Direção/Autoria/Adaptação: Gil Collares
Elenco / performers:Gil Collares, Daniel Braga e Cássio
Machado
Iluminação:José Renato Lopes
Trilha Sonora:Gil Collares
Figurino:Fabrízio Rodrigues e Gil Collares
Duração:50 minutos
Classificação:Livre
*Diego Ferreira é Graduado em
Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante da
GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante
do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones
Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos
de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.