sábado, 19 de agosto de 2023

ESPERANDO GODOT (RS)


TRADIÇÃO versus CONTEMPORANEIDADE EM ESPERANDO GODOT

por Diego Ferreira*


“Esperando Godot”, uma das mais desconcertantes obras literárias do século XX, aponta, de maneira incontornável o paroxismo da modernidade: os sintomas de uma cultura que manifesta, do modo mais agudo a sua crise, o seu limite. Clássico moderno que é, permanece e se renova sempre. O lugar central de Beckett no teatro está longe de ser capítulo encerrado na reflexão contemporânea. Por isso segue sendo encenado mundo afora. E seguirá sendo.  Esperando Godot é uma grande parábola da sociedade moderna. É o testemunho do um fim de uma época, do esgotamento de uma sociedade, do esgotamento da possibilidade de ação humana na medida em que perdemos a noção da nossa existência.

Me parece que evocar Beckett na atualidade acontece justamente quando nossas linguagens parecem já não dar conta de um mundo tão fragmentado, convulsionado e caótico. Quando as palavras e as imagens já não conseguem tranquilizar nossa insegurança nem remediar uma realidade desprovida de sentido. É como se Beckett ainda nos questionasse: como representar o irrepresentável? Como dar uma cena, um quadro simbólico para aquilo que foge aos marcos da razão? Como explicar o inexplicável de um cotidiano insensato e amnésico, repetitivo e ausente?

E algumas dessas reflexões estão no cerne da encenação proposta por Luciano Alabarse, que acerta justamente em evidenciar aspetos humanos aliados a um forte apelo estético que impacta o espectador desde o início da produção. E a proposta estética evidenciada pelo espaço cênico; um cenário de restos, escombros, ruínas de lixo; já é uma metáfora que coloca Beckett na atualidade, pois situar “Esperando Godot” no meio do lixo é também olhar para o hoje, para o mundo em que a sujeira nos cerca e impacta em tudo na vida contemporânea. E em meio a esses escombros repleto de lixo que surgem as figuras beckettinianas: Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky e o Menino. Outro trunfo da produção foi o elenco encabeçado apenas por atrizes, o que não é nenhuma novidade tratando-se de “Esperando Godot”, mas aqui o mérito é a  reunião no palco do que há de melhor do teatro gaúcho tratando-se de atuação, mesclando gerações diferentes, mas que nessa produção as atuações convergem para o mesmo caminho. Sandra Dani e Janaína Pellizon são respectivamente Estragon e Vladimir, responsáveis por conduzir a peça de longa duração e em nenhum momento perdem o vigor e a vitalidade dos personagens. A dupla funciona muito bem através da construção de jogos de palavras, falas sem sentido, diálogos e personagens que mudam abruptamente de emoções e esquecem tudo, desde as suas próprias identidades até o que aconteceu no dia anterior. Tudo isso contribui para o humor absurdo ao longo da peça. E Sandra Dani e Janaína Pellizon através de suas construções submergem em subjetividades para a partir disso construir a humanidade necessária que faz com que acreditamos nessas figuras niilistas.    

É sempre um deleite assistir Sandra Dani nos palcos com tamanha força e dignidade em cena, uma verdadeira aula que todo artista em formação deveria obrigatoriamente assistir para aprender com quem dedica uma vida inteira de forma ética a arte de interpretar. Arlete Cunha também é do mesmo patamar de Sandra Dani e impressiona como Pozzo, empregando uma força tamanha que nos arrebata. Sua construção é enérgica fazendo um contraponto a dupla central. Valquíria Cardoso interpreta o Menino e trás leveza e poesia nos breves momentos que aparece em cena. Mas é em Lisiane Medeiros a grata surpresa da produção, por sua construção sanguínea de Lucky, figura meio bicho/homem, que é dominado por Pozzo. Mesmo sendo uma figura animalesca, que se comunica por uma via não verbal, cria uma dimensão humana através de um corpo presente, um corpo explorado, que se move pelo espaço e mesmo em momentos em que está deitado num canto do espaço chama atenção do espectador pela força poética que sua figura exprime. Uma das cenas mais impactantes da montagem é justamente aquela em que Lucky assume o microfone e exprime todas a vozes do mundo, e é justamente aqui que Luciano Alabarse articula a tradição do texto versus a contemporaneidade da encenação, fincando o clássico na atualidade. Presentificar essa figura hibrida que é Lucky não é tarefa fácil, porém Medeiros através de sua construção nos presenteia numa interpretação arrebatadora.  

“Esperando Godot” na visão de Alabarse é teatro de qualidade, poético e teatral, com uma grande equipe técnica que demostra o quão Beckett ainda precisa ser encenado pois segue nos provocando reflexões acerca da nossa existência. 

FICHA TÉCNICA: 

ESPERANDO GODOT 

Texto de SAMUEL BECKETT 

Direção de LUCIANO ALABARSE 

 Elenco: 

SANDRA DANI (Estragon) JANAÍNA PELLIZON (Vladimir) 

ARLETE CUNHA (Pozzo) LISIANE MEDEIROS (Lucky) 

VALQUÍRIA CARDOSO (Menino) 

Diretora Assistente ÂNGELA SPIAZZI 

Cenografia e Trilha Sonora LUCIANO ALABARSE 

Figurinos ZÉ ADÃO BARBOSA 

Iluminação MAURÍCIO MOURA E JOÃO FRAGA 

Construção Árvore RODRIGO SHALAKO 

Preparação Corporal ÃNGELA SPIAZZI 

Design Gráfico JAQUES MACHADO 

Operação de Som MANU GOULART 

Operação de Luz JOÃO FRAGA E MAURÍCIO MOURA 

Assessoria de imprensa AGÊNCIA CIGANA – CÁTIA TEDESCO E MAUREN FAVERO 

Produção Executiva JAQUES MACHADO 

Adaptação Texto LUCIANO ALABARSE 

Uma produção ALABARSE PRODUÇÕES CULTURAIS ME 

 

*Diego Ferreira - Editor do Olhares da Cena. Dramaturgo, Professor e Crítico de Teatro. Graduado em Teatro/UERGS. Curador do 28º Porto Alegre em Cena. Integrante da Comissão Julgadora do 9º Prêmio Nacional de Dramaturgia Carlos Carvalho. Integrante da Comissão do Prêmio Tibicuera de Teatro Infanto-Juvenil 2023. Vencedor do Prêmio Açorianos 2021 na categoria Ação Periférica com o projeto "Três tempos para a Dramaturgia Negra no RS." Colunista da Revista Brasa. Integrante do CEN – Coletivo de Escritores Negros do RS.