“A mulher arrastada” foi o espetáculo de abertura da CURA – I Mostra de Artes Cênicas Negras
que nasce com o propósito de fortalecer a dignidade negra nas disputas nas
artes cênicas. E digo com toda certeza que não poderia ter escolha mais
acertada. Estamos vivendo tempos pandêmicos. Tempos sombrios. Tempos cabulosos.
E a CURA surge para trazer um alento a tudo isso que nos acomete. Nas últimas
décadas muito se falou e foram enaltecidas perspectivas de virem à frente da
cena os elementos estéticos que envolvem a cultura negra no Brasil. Assim,
diante das diversas formas expressivas que nos propõem estéticas apreciativas
na nossa atualidade, tais formas constantemente estão diante de contextos sejam
sociais, culturais, políticos, antropológicos, artísticos, que nos conduzem a
refletir a respeito dos diversos formatos apresentados para a nossa fruição e
entendimento de linguagens construídas por nós. Nós, que estabelecemos,
invariavelmente, códigos que propiciam a complexidade da comunicação e
expressão humana. Desse modo, o corpo negro é uma fonte inesgotável de
proposições estéticas. Falar sobre esta fonte como um campo de descobertas e de
fazeres, como sendo um fenômeno estético bem como o sujeito da percepção,
oferece a possibilidade de descobertas do sensível e do indizível que é propiciada
pela arte. Neste caso, arte virtual e remota devido aos tempos pandêmicos.
Assistir “A mulher arrastada” online foi uma experiência
arrebatadora. Pude experimentar o espetáculo de modo presencial e agora online.
Afirmo que nas duas ocasiões o trabalho me provoca e emociona, de modos
diferentes e em realidades distintas. A experiência virtual trouxe nuances que
não tinha experimentado antes como a câmera que coloca os interpretes em
evidência, provocando o espectador, como se a câmera fosse uma lente de
aumento, e essa câmera é móvel, é viva e amplia as possibilidades de fruição do
espetáculo, mantendo um diálogo direto com o “tele – espectador”. “A mulher
arrastada” é um trabalho contundente que surge como uma ode contra o apagamento
da memória de Cláudia da Silva Ferreira, mulher, negra, pobre, mãe que foi
brutalmente assassinada e arrastada pela PM/RJ. Semana passada um homem negro
foi brutalmente assassinado num supermercado em Porto Alegre e somado a este
tem uma centena de casos onde o corpo negro continua sendo alvo. Ainda
continua. Ainda. Até quando? Até quando o corpo negro continuará sendo
banalizado e espancando até a morte? Ou arrastado até a morte?
Mesmo existindo essa interlocução a partir do campo da
virtualidade, os intérpretes nãos se furtam a isso e com sua presença e
humanidade conseguem dialogar diretamente com o espectador, principalmente
quando interagem com a câmera falando diretamente através de suas lentes. Sinceramente
não acredito muito nessa nova forma de fazer teatro, essa relação que se
estabelece a partir de dispositivos, porém a de se destacar que essa primeira
experiência da CURA foi totalmente satisfatória pelo fato de a produção
repensar a estrutura de captação que foi executada dentro da Sala Álvaro
Moreira com todo aparato de iluminação e som.
A escrita de Diones Camargo me toca de uma forma intensa, justamente
por criar narrativas que evoquem vozes que cada vez mais precisam ser
exaltadas, vozes como esta ecoem e não sejam caladas, busquem o seu lugar de
fala, buscando por si só o lugar de protagonismo sem a necessidade de mediação
de terceiros. “A mulher arrastada” é um texto que a começar pela estrutura,
eclode o drama assim como ocorre em autores pós-modernos, colocando em cena
monólogos e vozes.
O texto é permeado de memórias fragmentárias e inconstantes, ficção e realidade
andam juntas, também a dimensão do tempo está desconstruída: não há noção de
passado e presente, separação de eu e outro; em caráter de hibridismo (o texto
é um poema dramático, narrativo, concreto, e extremamente político, uma peça
manifesto); um novo estado de expressão e percepção em uma escrita que é
distante da estrutura tradicional de enredo. A fragmentação do sujeito
contemporâneo é alcançada esteticamente com a utilização de recursos como as
figuras do HOMEM/POLICIAL que tem a função de situar os passos de Cláudia, a
utilização de uma narrativa não linear, não especificação das personagens e do
cenário, distorção do senso de realidade e de tempo.
A interpretação irretocável de Celina Alcântara que é simplesmente arrasadora,
meticulosa e espetacular. No vídeo Celina alcança uma força ainda maior nas
vezes em que o close está focado em seu rosto. Impossível assistir a
performance de Celina e não ser tocado, não ser perturbado pela força com que
representa a personagem. Pedro Nambuco está no mesmo patamar de Celina e me
assombra apenas através de sua presença, pois representa a força e a
truculência policial branca, representa toda a bestialidade dos militares que
tomam conta do poder e do estado. Nambuco representa um personagem que me dá
asco, de certa forma, desde suas palavras iniciais, durante a violência que
trata a mulher arrastada e até mesmo quando não tem falas, nem tampouco está em
cena, mas apenas pelo fato de percebermos sua presença rondando o espaço como
um lobo faminto. A dupla de atores está de parabéns pelo excelente
trabalho. Assim como a direção de Adriane Mottola, que soube concatenar
todos os elementos da encenação, partindo do texto de Diones, e explorando o
melhor dos atores. Direção primorosa que parte de elementos simples para chegar
num trabalho arrojado. Elementos como o carrinho de polícia que pode até passar
despercebido, mas que dentro do contexto representa toda uma parcela de
policiais que agem de forma ilegal dentro de corporações e que cometem
barbáries como à relatada no espetáculo. Mottola faz um teatro essencial, um
verdadeiro manifesto que é bárbaro e poético ao mesmo tempo.
Impossível não citar a iluminação funcional de Ricardo Vivian, que além de
iluminar o espaço da cena onde os atores atuam, cria uma luz perfeita que dá
conta de todo espaço, desde a entrada até atrás das arquibancadas criando um
ambiente muitas vezes sufocantes, como a trilha sonora de Felipe Zancanaro que
se faz presente em grande parte da cena, de forma sutil, operada ao vivo, uma
experiência sonora que auxilia muito na construção emotiva do espetáculo.
Sigamos clamando: Claudia da Silva Ferreira, presente!
FICHA TÉCNICA
Direção: Adriane Mottola Texto:Diones Camargo Elenco:Celina Alcântara e
Pedro Nambuco Iluminação:Ricardo Vivian Trilha Sonora:Felipe Zancanaro
Duração:50 minutos Classificação: 12 anos
+ Infos no site: mostracura.com.br
*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da
Cena. Integrante da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante
do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones
Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos
de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.