ATUAÇÃO BRILHANTE EM NARRATIVAS DE INCÔMODO
por Diego Ferreira*
"Manifesto", é um gênero textual que consiste numa espécie de declaração formal, persuasiva e pública para a transmissão de opiniões, decisões, intenções e ideias. Normalmente de cunho político, um manifesto tem como objetivo principal expor determinado ponto de vista publicamente ou mesmo para um indivíduo ou grupo de pessoas. É considerado uma importante ferramenta democrática, pois possibilita que todo o indivíduo possa expressar publicamente o seu ponto de vista sobre determinado situação ou assunto, seja social, político, cultural ou religioso.
"A Mulher Arrastada" é apresentada como "peça-manifesto", um desabafo, um grito urgente para fazer ecoar a brutalidade ocorrida com Cláudia da Silva Ferreira, mulher negra, pobre e arrastada por policiais no Rio de Janeiro. No campo da dramaturgia, este manifesto surge para dar corpo, voz e principalmente nome a Claudia, e tudo o que vem acontecendo nos últimos tempos, com a ascensão no poder de um presidente extremamente racista e que representa e legítima parte da população que compactua com ele no que tange a discriminação racial.
Surge também como um acalanto pós execução da Marielle. É lógico que a escrita surge muito antes deste último fato, mas serve para pensar, refletir e questionar até quando, ou melhor, quantas Cláudias, Marielles, Marias e tantas outras vão perder suas vidas e nada, absolutamente nada irá acontecer.
A escrita de Diones me toca de uma forma intensa, primeiramente, pelo fato de eu ser negro, e me identificar, mas mais do que isso, me importar e querer cada vez mais que vozes como esta ecoe e não sejam caladas, busquem o seu lugar de fala, buscando por si só o lugar de protagonismo sem a necessidade de mediação de terceiros. E segundo que a escrita é provocativa, não esbarra no fato da premissa da peça, estar em todas as mídias, o que poderia escorregar e cair em clichês ou até mesmo na criação de uma história melodramática tentando apenas emocionar o leitor/espectador com o drama da "pobre vítima" Claúdia. Mas graças ao olhar apurado, “A mulher arrastada” é um texto que a começar pela estrutura, eclode o drama assim como ocorre em autores pós-modernos, colocando em cena monólogos e vozes.
O texto é permeado de memórias fragmentárias e inconstantes, ficção e realidade andam juntas, também a dimensão do tempo está desconstruída: não há noção de passado e presente, separação de eu e outro; em caráter de hibridismo (o texto é um poema dramático, narrativo, concreto, e extremamente político, uma peça manifesto); um novo estado de expressão e percepção em uma escrita que é distante da estrutura tradicional de enredo. A fragmentação do sujeito contemporâneo é alcançada esteticamente com a utilização de recursos como as figuras do HOMEM/POLICIAL e das SOMBRAS que tem a função de situar os passos de Cláudia, a utilização de uma narrativa não linear, não especificação das personagens e do cenário, distorção do senso de realidade e de tempo.
O trabalho de Diones é um verdadeiro “tour de force” dramatúrgico, que se materializa no espetáculo através de uma grande e competente equipe que consegue nos oferecer um trabalho de alto nível técnico e emocionante, a começar pela interpretação irretocável de Celina Alcântara que é simplesmente arrasadora, meticulosa e espetacular. Alcança um registro que consegue dar corpo/voz a Cacau, como era conhecida Claúdia Ferreira. Impossível assistir a performance de Celina e não ser tocado, não ser perturbado pela força com que representa a personagem. Acompanho a muitos anos o trabalho de Celina, mas sem sombra de dúvida "A mulher arrastada" é daqueles personagens que vão ficar guardados na memória por muito tempo pela performance cênica, mas também pela função social e política que a obra de arte tem alcançado. Pedro Nambuco está no mesmo patamar de Celina e me assombra apenas através de sua presença, pois representa a força e a truculência policial branca. Nambuco representa um personagem que me dá asco, de certa forma, desde suas palavras iniciais, durante a violência que trata a mulher arrastada e até mesmo quando não tem falas, nem tampouco está em cena, mas apenas pelo fato de percebermos sua presença rondando o espaço como um lobo faminto. A dupla de atores está de parabéns pelo excelente trabalho.
Assim como a direção de Adriane Mottola, que soube concatenar todos os elementos da encenação, partindo do texto de Diones, e explorando o melhor dos atores. Direção primorosa que parte de elementos simples para chegar num trabalho arrojado. Elementos como o carrinho de polícia que pode até passar despercebido, mas que dentro do contexto representa toda uma parcela de policiais que agem de forma ilegal dentro de corporações e que cometem barbáries como a relatada no espetáculo. Mottola faz um teatro essencial, um verdadeiro manifesto que é bárbaro e poético ao mesmo tempo.
Impossível não citar a iluminação fantástica de Ricardo Vivian, que além de iluminar o espaço da cena onde os atores atuam, cria uma luz perfeita que dá conta de todo espaço, desde a entrada até atrás das arquibancadas criando um ambiente muitas vezes sufocantes, como a trilha sonora de Felipe Zancanaro que se faz presente em grande parte da cena, de forma sutil, operada ao vivo, uma experiência sonora que auxilia muito na construção emotiva do espetáculo.
Assistir "A mulher arrastada" passa a ser uma obrigação para aqueles que gostam do bom teatro e para aqueles que precisam entender que o racismo é crime e precisa ser banido, que não pode ser tolerado, que precisa ser discutido e o espetáculo cumpre também esta função, de alargar e refletir sobre o ser negro num país extremamente racista. Que a produção possa circular por muito tempo levando a voz de Cláudia da Silva Ferreira o mais longe possível dizendo sempre: CLAUDIA DA SILVA FERREIRA: PRESENTE!
Surge também como um acalanto pós execução da Marielle. É lógico que a escrita surge muito antes deste último fato, mas serve para pensar, refletir e questionar até quando, ou melhor, quantas Cláudias, Marielles, Marias e tantas outras vão perder suas vidas e nada, absolutamente nada irá acontecer.
A escrita de Diones me toca de uma forma intensa, primeiramente, pelo fato de eu ser negro, e me identificar, mas mais do que isso, me importar e querer cada vez mais que vozes como esta ecoe e não sejam caladas, busquem o seu lugar de fala, buscando por si só o lugar de protagonismo sem a necessidade de mediação de terceiros. E segundo que a escrita é provocativa, não esbarra no fato da premissa da peça, estar em todas as mídias, o que poderia escorregar e cair em clichês ou até mesmo na criação de uma história melodramática tentando apenas emocionar o leitor/espectador com o drama da "pobre vítima" Claúdia. Mas graças ao olhar apurado, “A mulher arrastada” é um texto que a começar pela estrutura, eclode o drama assim como ocorre em autores pós-modernos, colocando em cena monólogos e vozes.
O texto é permeado de memórias fragmentárias e inconstantes, ficção e realidade andam juntas, também a dimensão do tempo está desconstruída: não há noção de passado e presente, separação de eu e outro; em caráter de hibridismo (o texto é um poema dramático, narrativo, concreto, e extremamente político, uma peça manifesto); um novo estado de expressão e percepção em uma escrita que é distante da estrutura tradicional de enredo. A fragmentação do sujeito contemporâneo é alcançada esteticamente com a utilização de recursos como as figuras do HOMEM/POLICIAL e das SOMBRAS que tem a função de situar os passos de Cláudia, a utilização de uma narrativa não linear, não especificação das personagens e do cenário, distorção do senso de realidade e de tempo.
O trabalho de Diones é um verdadeiro “tour de force” dramatúrgico, que se materializa no espetáculo através de uma grande e competente equipe que consegue nos oferecer um trabalho de alto nível técnico e emocionante, a começar pela interpretação irretocável de Celina Alcântara que é simplesmente arrasadora, meticulosa e espetacular. Alcança um registro que consegue dar corpo/voz a Cacau, como era conhecida Claúdia Ferreira. Impossível assistir a performance de Celina e não ser tocado, não ser perturbado pela força com que representa a personagem. Acompanho a muitos anos o trabalho de Celina, mas sem sombra de dúvida "A mulher arrastada" é daqueles personagens que vão ficar guardados na memória por muito tempo pela performance cênica, mas também pela função social e política que a obra de arte tem alcançado. Pedro Nambuco está no mesmo patamar de Celina e me assombra apenas através de sua presença, pois representa a força e a truculência policial branca. Nambuco representa um personagem que me dá asco, de certa forma, desde suas palavras iniciais, durante a violência que trata a mulher arrastada e até mesmo quando não tem falas, nem tampouco está em cena, mas apenas pelo fato de percebermos sua presença rondando o espaço como um lobo faminto. A dupla de atores está de parabéns pelo excelente trabalho.
Assim como a direção de Adriane Mottola, que soube concatenar todos os elementos da encenação, partindo do texto de Diones, e explorando o melhor dos atores. Direção primorosa que parte de elementos simples para chegar num trabalho arrojado. Elementos como o carrinho de polícia que pode até passar despercebido, mas que dentro do contexto representa toda uma parcela de policiais que agem de forma ilegal dentro de corporações e que cometem barbáries como a relatada no espetáculo. Mottola faz um teatro essencial, um verdadeiro manifesto que é bárbaro e poético ao mesmo tempo.
Impossível não citar a iluminação fantástica de Ricardo Vivian, que além de iluminar o espaço da cena onde os atores atuam, cria uma luz perfeita que dá conta de todo espaço, desde a entrada até atrás das arquibancadas criando um ambiente muitas vezes sufocantes, como a trilha sonora de Felipe Zancanaro que se faz presente em grande parte da cena, de forma sutil, operada ao vivo, uma experiência sonora que auxilia muito na construção emotiva do espetáculo.
Assistir "A mulher arrastada" passa a ser uma obrigação para aqueles que gostam do bom teatro e para aqueles que precisam entender que o racismo é crime e precisa ser banido, que não pode ser tolerado, que precisa ser discutido e o espetáculo cumpre também esta função, de alargar e refletir sobre o ser negro num país extremamente racista. Que a produção possa circular por muito tempo levando a voz de Cláudia da Silva Ferreira o mais longe possível dizendo sempre: CLAUDIA DA SILVA FERREIRA: PRESENTE!
FICHA TÉCNICA
Texto DIONES CAMARGO
Direção ADRIANE MOTTOLA
Elenco CELINA ALCÂNTARA e PEDRO NAMBUCOTrilha Sonora Original FELIPE ZANCANARO
Iluminação RICARDO VIVIAN
Cenografia ISABEL RAMIL (ambientação cênica) e ZOÉ DEGANI (objetos cenográficos)
Fotos de Divulgação REGINA PEDUZZI PROTSKOF
Arte Gráfica JESSICA BARBOSA
Assessoria de Imprensa LAURO RAMALHO
Produção LUÍSA BARROS
Realização DIONES CAMARGO e LA PHOTO GALERIA E ESPAÇO CULTURAL
Apoio CIA. STRAVAGANZA e UTA – USINA DO TRABALHO DO ATOR
*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.
*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.