VISÃO ALEGÓRICA DE ACORDO COM O NOSSO TEMPO
Por Diego Ferreira*
“O inverno do nosso descontentamento – nosso Ricardo III” é uma visão atual e particular da tragédia Ricardo III do
Shakespeare, e não apenas uma visão, mas afirmo que trata-se de uma
reinvenção iluminada da obra do bardo. Creio que não existe momento melhor para
trazer a tona o contexto contido na obra. No Brasil atual vivemos um momento de
muito descontentamento no que tange a política e obvio que isso reflete em
todos os campos da sociedade. Vivemos em tempos de guerras, de autoritarismo, de
tiranos que fazem o que for necessário para chegar ao poder e manter-se por lá,
independente do que for necessário fazer, inclusive a tentativa de acabar com a democracia. E essa visão da Cia Teatro ao Quadrado juntamente com a
presença de Luciano Alabarse, de certo modo expressa todo o nosso descontentamento parafraseando o
título do espetáculo. Ricardo III é o primeiro protagonista de
Shakespeare a alcançar um status icônico e viver, por assim dizer, por direito
próprio; ele domina a própria peça em sua ascensão implacável ao poder,
lembrando muito um genocida autoritário tupiniquim, e esse gancho foi
extremamente articulado na montagem, tanto é que tem
cenas hilárias (riso de nervoso) que trazem a figura deste inominável.
Marcelo Adams é um ator-supremo, um camaleão que se transforma de
acordo com a platéia a que se dirige. Já tive o prazer de vê-lo em outras tantas interpretações memoráveis como “Édipo” e também no espetáculo “Os homens do
triângulo cor de rosa” que na minha opinião tinha sido talvez o melhor trabalho
de atuação que assisti do Marcelo e um dos melhores trabalhos do grupo, quiçá um dos melhores espetáculos do nosso teatro, mas que bom que os anos passam, e a maturidade chega ( e
entenda maturidade tanto de vida quanto profissional) e eis que mais uma vez
o ator nos arrebata com um tour de force que impressiona do inicio ao fim do
espetáculo. Assim como a imagem de Hamlet com a caveira é icônica, Ricardo III
é marcado pela deformidade física; sua vilania se traduz também em seu corpo. E
é justamente esse corpo que é a tônica da produção. Um corpo moldado ali, na
frente do espectador, assim como o oleiro molda o barro, e talvez seja essa a metáfora que melhor qualifica o trabalho de Marcelo e Margarida nessa produção, ou seja, esse corpo/barro, moldado pelas mãos do oleiro/Alabarse que ao longo da produção vai se construindo e esvaindo no tempo/espaço mas impregnando a nossa compreensão através da narrativa posta em cena. Marcelo Ádams no papel título está deslumbrante em sua composição e a forma ética que constrói o seu trabalho é impressionante, mas impossível não se curvar ao trabalho de Margarina Leoni Peixoto que pauta o seu trabalho na criação de figuras que orbitam o universo construído por Ádams, que muitas vezes nem falas ou texto tem, porém a sua presença é de uma energia magnetizante que bastam para preencher todos os espaços possíveis do palco. A interpretação de Margarida é tão marcante e tão meticulosa que em muitos momentos ela rouba o foco com sua presença silenciosa porém poderosa, com suas construções hilárias e tocantes como a figura da criança.
O texto Shakespeareano está lá em toda sua glória, começando com “Este é o inverno de nosso descontentamento”, assim como “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”, perfeitamente dentro de contexto, apesar da existência de um espaço inóspito cheio de macas e restos de hospitais, palanques e cavalos, sim cavalos de brinquedo, muitos cavalos. Assim como a dramaturgia, o cenário nos coloca num lugar de deformidades, de pedaços, de fragmentos que denunciam toda uma doença que a humanidade está inserida e clamando por cura e esse olhar cirúrgico dos criadores do espetáculo nos mostram que através da arte, principalmente uma arte política, seja o principal caminho para uma cura coletiva e não somente isso, mas a abertura de um diálogo que retome o caminho no fortalecimento da democracia. Uma encenação que nos oferece uma visão alegórica de acordo com o nosso tempo sobre a ascenção e queda da tirania ao poder. A ascenção já assistimos e vimos no que deu, agora estamos aguardando a queda do genocida tupiniquim e ela está próxima.
FICHA TÉCNICA: Encenação: LUCIANO ALABARSE Atuação: MARCELO ÁDAMS e MARGARIDA PEIXOTO Dramaturgia: LUCIANO ALABARSE, MARCELO ÁDAMS e MARGARIDA PEIXOTO, a partir de A tragédia do rei Ricardo III, de William Shakespeare Produção executiva: JAQUES MACHADO E LINCOLN CAMARGO Figurinos: ANTONIO RABÀDAN Cenografia: LUCIANO ALABARSE Iluminação: MAURÍCIO MOURA e JOÃO FRAGA Trilha sonora pesquisada: MARCELO ÁDAMS e LUCIANO ALABARSE Operação de sonoplastia: LUIZ MANOEL Produção: CIA TEATRO AO QUADRADO e LUCIANO ALABARSE Identidade visual: DÍDI JUCÁ Costureira: MARIA JOSÉ LEONI Divulgação: AGÊNCIA CIGANA Fotografias: ALISSON PHERNANDES Realização: CIA TEATRO AO QUADRADO 20 ANOS
*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002. Coordena o Núcleo de Dramaturgia do RS. Editor do blog Olhares da Cena. Professor do Espaço do Ator e da extensão na UNISINOS. Produziu “Três tempos para a dramaturgia negra no RS” contemplado no edital Diversidade nas Culturas da Fundação Marcopolo. Vencedor do Prêmio Açorianos de Teatro 2021 na categoria Ação Periférica. indicado em três categorias no Prêmio Açorianos 2021.