Amores Surdos
“Nós temos que aprender a conviver com situações novas!”
No Brasil, ainda se fala muito na crise da dramaturgia. Muitos consideram o teatro contemporâneo como o grande vilão, chamando-o de vazio, pueril, sem conteúdo. E o que precisaria acontecer para tornar “este teatro” interessante? Antes de tudo acredito que o teatro, seja ele qual for, pode e deve falar de questionamentos internos, relevantes, que por mais simples que possam ser, esses sim, serão atemporais e universais. Tudo isso para falar de Amores Surdos de Grace Passô, dramaturga do Grupo Espanca! de Minas Gerais. Sua escrita se alimenta na própria contemporaneidade, nesta relação cada vez mais estranha entre o homem, o seu tempo e tudo aquilo que o cerca. A violência, as incertezas e os caminhos da vida. Mostrando que é possível sim, fazer um teatro interessante, renovador, onde não só a dramaturgia é o trunfo do projeto, mas todo o tratamento dado a encenação que trata de temas cotidianos, simples, do homem do nosso tempo.
Amores Surdos fala de uma família, pai, mãe, quatro irmãos e uma irmã. Estes personagens não se ouvem, não se enxergam, não se percebem, construindo uma metáfora da passagem para a vida adulta e, conseqüentemente, a perda da inocência. O mergulho executado pelo grupo para narrar à história de uma família aparentemente comum, partindo de situações bem corriqueiras, atitudes como não dormir bem, esquecer as chaves de casa, preparar o café, deixar a torneira aberta e cuidar de um animal doméstico. No entanto, num mundo em que todas as histórias parecem já terem sido contadas, o grupo sugere que há mais para ver e sentir por trás de um quadro imperfeito, repleto de situações e de sentimentos.
Logo no início, um dos rapazes nos revela que no final um telefonema informará que o irmão mais velho, que mora num país distante, suicidou-se. Mas logo depois alguém nos diz que o rapaz é sonâmbulo e aí ficamos sem saber se o que ele disse foi verdade ou sonho. O irmão mais novo, criança ainda, é asmático e o outro sofre de uma síndrome de pânico. A Irma por sua vez, fala sempre aos berros por causa dos fones de ouvido de que jamais se separa. A mãe, de tempos em tempos, reúne todos na sala para um ritual familiar: executarem juntos, coreograficamente, um número de sapateado. Nessas ocasiões, tentam achar o pai, mas ninguém sabe onde ele está. No final uma enxurrada de lama toma conta do palco, as pessoas escorregam e caem imundas. É quando o filho mais novo revela que há cinco anos, mais ou menos, havia trazido do zoológico um filhotinho de hipopótamo que guardou no quarto do irmão que havia viajado. Desde então, o hipopótamo vive lá. E, lamentavelmente, havia devorado o pai. Quando um dos irmãos decide matar o animal, a mãe, pateticamente, grita: “Nós temos que aprender a conviver com situações novas!” – e repete histericamente a frase enquanto o telefone toca,toca, toca e ninguém atende.
No ponto de vista da encenação, o espetáculo é extremamente minucioso em todos os aspectos. No palco temos uma cenografia que nos remete a uma sala, onde acontece a ação da peça. Temos paredes confeccionadas com um material parecido com uma renda, que reflete através desta transparência o interior de cada personagem, nos revelando o que ocorre por trás de cada um. O elenco dirigido por Rita Clemente é ótimo, pois cumpre com brilhantismo a tarefa de interpretar personagens que vão se revelando aos poucos, sublinhando os estados de alma dos personagens e o calor das relações geralmente conturbadas entre eles, em interpretações verdadeiramente apaixonantes.
A encenação é surpreendente, pois agarra o espectador logo no início quando um personagem dirige-se diretamente ao público e já anunciando o que irá acontecer, que o telefone irá tocar e que receberá uma notícia de suicídio do irmão. O que ele prevê realmente acontece, mas o mais surpreendente é o que acontece antes do que já sabemos acontecer. Situações vão se revelando e se encaixando para no final surpreender o espectador com uma lama que invade a sala, a descoberta de um hipopótamo que vive no quarto e engole o pai, a mãe que grita incessantemente e dança sapateado. A direção se utiliza disso, de um bom texto, de bons atores, da simplicidade, de um número de sapateado, de ações e gestos exatos e que provoca no espectador um misto de fervor, imaginação (um hipopótamo no quarto!), beleza e poesia visual. Uma revelação de dramaturgia num espetáculo áspero. E como o personagem da mãe grita ao final: “Nós temos que aprender a conviver com situações novas!”, aproveito e digo, temos que aprender a conviver com o novo, com grupos, atores, dramaturgos e diretores novos, desde que tenha qualidade, como comprovou o Grupo Espanca! no auge dos seus quatro anos. Nada de Zé Celso ou de Peter Brook (os quais admiro muito), o Em Cena deste ano me emocionou com o novo. Temos que aprender a conviver com o novo!