ESFACELAMENTO DA CENA SEM FRONTEIRAS
por Diego Ferreira*
Escrever sobre o espetáculo "A Fome" é uma tarefa ampla e desafiadora, pois o espetáculo se desenrola e se transforma no tempo e no espaço através da multiplicidade de camadas. A complexidade da produção parte de uma infinitude de corpos, de modos de existência e de expressão para colocar no centro da cena circunstâncias míticas e críticas sobre o feminino. A Cia. Espaço em Branco através da direção de João de Ricardo consegue nos provocar e nos surpreender e apresenta um espetáculo forte, intenso, impactante e que mantém a estética da Cia. já explorada em outros trabalhos, porém, aqui, a cena ganha uma dimensão maior, articulando conceitos, percepções e possibilidades que rompem com as convenções e levam a intérprete as últimas consequências, numa atuação louvável de Sissi Betina Venturin, que materializa este corpo/voz que tem uma fome voraz, pela vida. A dramaturgia de Sissi e Marcos Contreras é construída através de pequenos espasmos, contrações e divagações, fugindo das unidades de tempo/espaço e investindo numa voz que dialoga com o agora, investigando o espectador a traçar paralelos, a pensar e dialogar com questões éticas, antropológicas, filosóficas e sociais, sobretudo num tempo em que precisamos falar sobre feridas abertas da colonização e suas violências. Um texto forte e impactante, merecedor do recente Prêmio Açorianos que o espetáculo recebeu.
A interpretação/representação de Sissi é de uma força e magnitude, que a atriz (que é pequenina em estatura) cresce e se agiganta, tornando-se um monstro em cena. Sissi domina muito bem o seu instrumento vocal/corporal e através deste dominio transita entre a performance, o teatro e a dança. Impossível parar de olhar a intérprete, pois através de sua presença cria uma relação forte e palatável com a platéia.
Sissi emana através do seu corpo a resistência, a força, a ancestralidade, a ética, a persistência de seguir adiante, afetando-se por atravessamentos que permeiam as questões do nosso tempo. Realmente uma grande atriz e não é de hoje.
E junto com ela tem a marca de um encenador inquieto que está sempre buscando novas possibilidades para a cena. Ao assistir um espetáculo de João de Ricardo sabemos já de antemão que vamos ser provocados o tempo inteiro, instigados a chegar em outros lugares que ainda não foram explorados. Na cena não existem fronteiras, pelo contrário, as estruturas são esfaceladas e reinventadas. Cabe ressaltar a iluminação de Carina Sehn que explora muito bem as diversas possibilidades cênicas, uma luz que as vezes é mínima, depois avança para a macro, oscilando entre focos e led's para criar este espaço atemporal. Uma luz impecável.
"A Fome" é sem dúvida um trabalho que me conquistou muito, que me instigou e puxou o meu tapete, e isto é louvável.
Direção: João de Ricardo
Atuação: Sissi Betina Venturin
Dramaturgia: Marcos Contreras e Sissi Betina Venturin
Trilha sonora: Daniel Roitman e grupo
Iluminação: Carina Sehn. Vídeos: Jana Castoldi
Figurinos, produção e divulgação: João de Ricardo e Sissi Betina Venturin
Fotografia: Morgana Mazzon
*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.