“Esperando
Godot”, uma das mais desconcertantes obras literárias do
século XX, aponta, de maneira incontornável o paroxismo da modernidade: os
sintomas de uma cultura que manifesta, do modo mais agudo a sua crise, o seu limite.
Clássico moderno que é, permanece e se renova sempre. O lugar central de
Beckett no teatro está longe de ser capítulo encerrado na reflexão
contemporânea. Por isso segue sendo encenado mundo afora. E seguirá sendo. Esperando Godot é uma grande parábola
da sociedade moderna. É o testemunho do um fim de uma época, do esgotamento de
uma sociedade, do esgotamento da possibilidade de ação humana na medida em que
perdemos a noção da nossa existência.
Me
parece que evocar Beckett na atualidade acontece justamente quando nossas
linguagens parecem já não dar conta de um mundo tão fragmentado, convulsionado
e caótico. Quando as palavras e as imagens já não conseguem tranquilizar nossa
insegurança nem remediar uma realidade desprovida de sentido. É como se Beckett
ainda nos questionasse: como representar o irrepresentável? Como dar uma cena,
um quadro simbólico para aquilo que foge aos marcos da razão? Como explicar o
inexplicável de um cotidiano insensato e amnésico, repetitivo e ausente?
E
algumas dessas reflexões estão no cerne da encenação proposta por Luciano
Alabarse, que acerta justamente em evidenciar aspetos humanos aliados a um
forte apelo estético que impacta o espectador desde o início da produção. E a
proposta estética evidenciada pelo espaço cênico; um cenário de restos,
escombros, ruínas de lixo; já é uma metáfora que coloca Beckett na atualidade,
pois situar “Esperando Godot” no meio do lixo é também olhar para o hoje, para
o mundo em que a sujeira nos cerca e impacta em tudo na vida contemporânea. E
em meio a esses escombros repleto de lixo que surgem as figuras beckettinianas:
Estragon, Vladimir, Pozzo, Lucky e o Menino. Outro trunfo da
produção foi o elenco encabeçado apenas por atrizes, o que não é nenhuma
novidade tratando-se de “Esperando Godot”, mas aqui o mérito é a reunião no palco do que há de melhor do teatro
gaúcho tratando-se de atuação, mesclando gerações diferentes, mas que nessa
produção as atuações convergem para o mesmo caminho. Sandra Dani e
Janaína Pellizon são respectivamente Estragon e Vladimir, responsáveis
por conduzir a peça de longa duração e em nenhum momento perdem o vigor e a
vitalidade dos personagens. A dupla funciona muito bem através da construção de
jogos de palavras, falas sem sentido, diálogos e personagens que mudam
abruptamente de emoções e esquecem tudo, desde as suas próprias identidades até
o que aconteceu no dia anterior. Tudo isso contribui para o humor absurdo ao
longo da peça. E Sandra Dani e Janaína Pellizon através de suas
construções submergem em subjetividades para a partir disso construir a
humanidade necessária que faz com que acreditamos nessas figuras niilistas.
É
sempre um deleite assistir Sandra Dani nos palcos com tamanha força e
dignidade em cena, uma verdadeira aula que todo artista em formação deveria
obrigatoriamente assistir para aprender com quem dedica uma vida inteira de
forma ética a arte de interpretar. Arlete Cunha também é do mesmo
patamar de Sandra Dani e impressiona como Pozzo, empregando uma
força tamanha que nos arrebata. Sua construção é enérgica fazendo um
contraponto a dupla central. Valquíria Cardoso interpreta o Menino e trás
leveza e poesia nos breves momentos que aparece em cena. Mas é em Lisiane
Medeiros a grata surpresa da produção, por sua construção sanguínea de Lucky,
figura meio bicho/homem, que é dominado por Pozzo. Mesmo sendo uma
figura animalesca, que se comunica por uma via não verbal, cria uma dimensão
humana através de um corpo presente, um corpo explorado, que se move pelo
espaço e mesmo em momentos em que está deitado num canto do espaço chama
atenção do espectador pela força poética que sua figura exprime. Uma das cenas
mais impactantes da montagem é justamente aquela em que Lucky assume o
microfone e exprime todas a vozes do mundo, e é justamente aqui que Luciano
Alabarse articula a tradição do texto versus a contemporaneidade da
encenação, fincando o clássico na atualidade. Presentificar essa figura hibrida
que é Lucky não é tarefa fácil, porém Medeiros através de sua
construção nos presenteia numa interpretação arrebatadora.
“Esperando Godot” na visão de Alabarse é teatro de qualidade, poético e teatral, com uma grande equipe técnica que demostra o quão Beckett ainda precisa ser encenado pois segue nos provocando reflexões acerca da nossa existência.
FICHA
TÉCNICA:
ESPERANDO
GODOT
Texto
de SAMUEL BECKETT
Direção
de LUCIANO ALABARSE
Elenco:
SANDRA
DANI (Estragon) JANAÍNA PELLIZON (Vladimir)
ARLETE
CUNHA (Pozzo) LISIANE MEDEIROS (Lucky)
VALQUÍRIA
CARDOSO (Menino)
Diretora
Assistente ÂNGELA SPIAZZI
Cenografia
e Trilha Sonora LUCIANO ALABARSE
Figurinos ZÉ
ADÃO BARBOSA
Iluminação MAURÍCIO
MOURA E JOÃO FRAGA
Construção
Árvore RODRIGO SHALAKO
Preparação
Corporal ÃNGELA SPIAZZI
Design
Gráfico JAQUES MACHADO
Operação
de Som MANU GOULART
Operação
de Luz JOÃO FRAGA E MAURÍCIO MOURA
Assessoria
de imprensa AGÊNCIA CIGANA – CÁTIA TEDESCO E MAUREN FAVERO
Produção
Executiva JAQUES MACHADO
Adaptação
Texto LUCIANO ALABARSE
Uma
produção ALABARSE PRODUÇÕES CULTURAIS ME
*Diego
Ferreira - Editor do Olhares da Cena. Dramaturgo, Professor e Crítico de
Teatro. Graduado em Teatro/UERGS. Curador do 28º Porto Alegre em Cena.
Integrante da Comissão Julgadora do 9º Prêmio Nacional de Dramaturgia Carlos
Carvalho. Integrante da Comissão do Prêmio Tibicuera de Teatro Infanto-Juvenil
2023. Vencedor do Prêmio Açorianos 2021 na categoria Ação Periférica com o
projeto "Três tempos para a Dramaturgia Negra no RS." Colunista da
Revista Brasa. Integrante do CEN – Coletivo de Escritores Negros do RS.