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Foto: Izabel L. |
Propriedade e profundidade em transposição teatral
Assim como a obra de Bukowski é minimalista, o espetáculo “Bukowiski – Histórias da vida subterrânea” é extremamente minimalista e detalhista. O grupo Depósito de Teatro faz um mergulho vertical na obra do autor maldito e refaz sua vida através de fragmentos de uma obra estilhaçada e pautada por uma literatura autobiográfica.
A obra de Bukowiski é de um estilo extremamente livre e imediatista, não transparecendo demasiadas preocupações estruturais. Dotado de um senso de humor ferino, auto-irônico e cáustico. E a encenação do Depósito vai direto neste ponto, sendo extremamente fiel a este universo Bukowiskiano, recriando no Teatro de Arena uma atmosfera que auxilia ao espectador a adentrar no clima da história. A produção espalha por todo o teatro dezenas de garrafas de bebidas, embalagens de cigarros vazias e uma cama que avança pela plateia; além de uma geladeira, responsável por refrigerar as bebidas consumidas pelos atores durante o espetáculo.
A dramaturgia de Modesto Fortuna é pautada pela fragmentação, utilizando recortes da obra do autor, conseguindo concentrar no espetáculo uma obra que teria diversos caminhos a serem escolhidos, porém penso que a estrutura proposta por Fortuna foi muito acertada, pois trás a cena episódios fragmentados, mas pela forma como foi costurada demostra exatamente um Bukowski humano, com as suas fraquezas e qualidades expostas, trazendo a tona personagens marginais, prostitutas, sexo, alcoolismo, ressacas, corridas de cavalos, pessoas miseráveis e experiências escatológicas através de uma verborragia que dá o tom ao trabalho.
Após assistir ao espetáculo penso que este projeto pode (senão é?) ser considerado um projeto de vida de seu mentor Roberto Oliveira, pois o resultado é de tamanha propriedade e profundidade que é difícil pensar este projeto sendo executado por outros artistas de Porto Alegre. Digo isso e abro um parênteses para falar que acompanho a trajetória do Roberto frente ao Depósito há algum tempo, e que nas tradicionais Bagasextas já havia ali um pouco deste universo anárquico Bukowskiano, lógico que tratava-se de coisas totalmente diferentes, mas a essência estava ali, assim como nas encenações de Plínio Marcos, outro maldito. Assisti as encenações de “O auto da compadecida”, “O pagador de promessas”, “Hilda Hist in Claustro”, “Medusa de Rayban”, “Grávidas”, “O que seria do vermelho...”, “Solos Trágicos” e “Aquelas Duas” e digo sem pestanejar que “Bukowski” é uma das grandes obras primas do Depósito, juntamente com a “Compadecida”. Isso demonstra minha admiração pelo trabalho do grupo, mas chega de saudosismo e retornamos ao projeto atual que no meu ponto de vista eleva a qualidade dos trabalhos apresentados neste ano em Porto Alegre.
Roberto Oliveira está soberbo em cena, personificando o velho safado com nuances que demostram as várias facetas, ora é duro, violento, sarcástico, ora é tenro, tranquilo, ora verborrágico, sexual, escatológico, ora pensativo e reflexivo. Oliveira demostra através de sua experiência que tem todas as qualidades que um ator precisa ter para interpretar um personagem como este: complexo e cheio de nuances, e Roberto acerta muito. Como atua e dirige ao mesmo tempo credito parte dos seus méritos a IsandriaFermiano, sua assistente, que deve ter auxiliado muito na construção deste e demais personagens.
Os demais atores estão muito bem, conseguem alcançar registros excelentes que apoiam a atuação de Roberto Oliveira, que só não é o centro das atenções por se cercar de atores tão bons quanto ele. Marcelo Johann triunfa em suas construções, criando figuras diferentes que auxiliam no desencadeamento da narrativa onde as mulheres são o foco, interpretando a figura de Jimi e o pai. Elisa Heidrich é entregue e sua presença é fundamental no desenvolvimento do espetáculo. Francine Kliemann é intensa e imprime uma verdade nas suas construções. Aline Picetti é uma revelação, não conhecia seu trabalho e surpreende muito com sua Tami. O elenco feminino é ótimo, mas o destaque fica com PittiSgarbi que arrasa nas construções de Jane e Edna, que entrega fantástica, que atriz maravilhosa, que mergulho sensacional, pois consegue construir personagens tão humanos que chegam a hipnotizar tamanha a entrega, revelando uma angústia tão grande que faz um contraponto a figura construída pelo Roberto.
A produção como um todo está de parabéns, desde a iluminação de Fabiana Santos, a trilha sonora pesquisada de Oliveira e Kliemann, os figurinos de Elisa que auxiliam muito na composição da cena, o cenário que reconstrói o Arena, enfim, tudo está a serviço do espetáculo.
Destaco também as ótimas ilustrações que são projetadas nas paredes do teatro, assim como os vídeos utilizados em cena, que diferente de outros espetáculos autodenominados pós modernos, são muito bem aproveitados em cena, como demostra no ótimo tempo da cena da Tami com sua amiga conversando com Bukowski ao telefone.
Enfim, o que mais posso dizer de um espetáculo repleto de méritos, que trás a tona um dos autores mais emblemáticos e celebrados da literatura mundial e que consegue com muito sucesso fazer valer a transposição para a cena de todo o universo do referido autor, e digo mais, se Bukowski vivo fosse, estaria com certeza honrado com tamanha entrega, respeito e propriedade que sua obra está sendo encenada no palco.
Direção: Roberto Salerno de Oliveira
Assistência de Direção: Isandria Fermiano
Dramaturgia: Modesto Fortuna
Elenco: Roberto Oliveira, Marcelo Johann , Elisa Heidrich, Francine Kliemann, Pitti Sgarbi e Aline Armani Picetti.
Iluminação: Fabiana Santos
Cenário: Modesto Fortuna
Figurinos: Elisa Heidrich
Orientação coreográfica: Andrea Spolaor
Produção Áudio Visual: Pátiovazio
Fotografia e Arte Gráfica: Jéssica Barbosa
Assessoria de Comunicação: Liane Strapazzon
Divulgação nas redes sociais: Fernanda Fávero
Produção Executiva: Joice Rossato
Produção Geral: Depósito de Teatro
Classificação: 18 anos
#Viva Bukowski vivo! Viva o bom teatro!
#vivaobomteatro