sábado, 22 de maio de 2021

HIPERGAIVOTA (RS)

 

SUSPENSÃO DO COTIANO ATRAVÉS DE VIVÊNCIA INTERATIVA

por Diego Ferreira*

HIPERGAIVOTA é uma experiência digital, um desdobramento do espetáculo “Dispositivo Gaivota” do Coletivo Errática. Trata-se de uma plataforma que o espectador vai explorando através dos seus próprios gestos e cliques. “Hipergaivota” é uma das melhores experiências artísticas dos últimos tempos pela inventividade, inovação e por permitir ao navegador desbravar outras searas, através de uma vivência interativa e criativa.

Uma peça de teatro desse tempo, para esse tempo, diz o texto de abertura, e de fato se configura dessa forma. Um experimento sobre o tempo. Sobre o espaço, mesmo questionando que espaços são estes, espaços fugazes e efêmeros. Nossos dedos passeiam nervosos por salas, e cada clique abre-se uma nova possibilidade estética, uma nova visão de um pequeno mundo que se agiganta diante de nós. Fragmentos de textos, imagens, performances, sons e uma infinidade de possibilidades de juntar partes de um grande quebra-cabeça emotivo, afetivo e sensorial. O nosso papel enquanto espectador é ir entrando nas salas, absorvendo e sentindo cada proposta, brincar, se divertir e a partir daí se colocar também no jogo, enquanto peça fundamental. Diante de todas as incertezas que vivemos no mundo diante de uma pandemia, quando não sabemos do dia de amanhã, ainda surgem projetos e propostas artísticas que te tiram do eixo, que provocam uma suspensão no seu cotidiano. “Hipergaivota” é um mergulho para dentro, pois enquanto se volta para os dramas e tensões das personagens do universo de Tchekhov, também são desvelados o universo e estrutura dos performes, fragmentos de um cotidiano em suspensão, frestas de banheiros, quartos, salas e quintais, travessias que me reportam de Porto Alegre até Boston, tudo sob um olhar que coloca em evidencia a máquina do fazer artístico, a nova possibilidade de criação a partir do estar dentro, do estar apartado de um todo, do seu coletivo, de sua tribo, mas mesmo assim existe vida, existe criação e existe reverberação potente do lado de cá.

“Hipergaivota” é uma grande possibilidade de composições a partir das cenas e dos dispositivos e das ligações que o espectador vai construindo com partes ou com o todo. Impossível tecer qualquer comentário estilístico ou de atuação quando o projeto requer apenas EXPERIÊNCIA. Sim, uma experiência viva pautada pela usina criativa e virtualizada que é essa “Hipergaivota”. Parabéns ao Coletivo Errativa que juntamente com o Grupojogo não somente agora, mas a algum tempo tem ventilado as artes cênicas do estado com propostas inventivas e inovadoras mas sem desconectar do humano, e por isso são projetos universais.      

Ficha técnica

Direção e Concepção: Francisco Gick

Dramaturgia e Código: Francisco Gick a partir de “A Gaivota” de Anton Tchekhov

Adaptação: Coletivo Errática

Elenco: Claudio Loimil, Jezebel De Carli, João Pedro DeCarli, Guega Peixoto, Luan Silveira, Gustavo Dienstmann, Mani Torres e Nina Picoli

Trilha Sonora: Vitório O. Azevedo

Figurino: Gustavo Dienstmann

Concepção e Criação de plataforma: Francisco Gick

Duração: 60 min

Recomendação etária: 18 anos

 

*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002.  Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Participou do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É integrante da GiraDramatúrgica - Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra coordenado por Carlos Canarin/UNESPAR. Professor do Espaço do Ator e da extensão UNISINOS. 

quinta-feira, 6 de maio de 2021

A ÚLTIMA NEGRA (RS) - CRÍTICA

 




COSMOVISÕES E EXISTÊNCIAS NEGRAS

| *por Diego Ferreira


Inicio minhas divagações sobre “A Última Negra” buscando refletir sobre a existência e sua relação entre teatro e negritudes. Primeiro busco pensar o teatro dentro do quadro atual em que nos encontramos e vislumbrar novas possibilidades de existência daqui em diante. A definição do verbo “existir” diz que “é ter existência real, ter presença viva, viver, ser”. Existir fala de presença viva. E PRESENÇA nas artes da cena tem um sentido amplo no que tange a uma presença real, mesmo que virtualizada como é o caso de “A Última Negra”. O mundo já não é mais o mesmo com a atual pandemia. Países de todo o planeta estão sofrendo as conseqüências desta crise, que são econômicas, sociais e também psicológicas. Foi dada uma pausa no cotidiano da humanidade e, compulsoriamente, cada indivíduo é levado a pensar sobre sua forma de existir no mundo: o trabalho, as relações, a maneira como utilizamos nossos recursos (ou a falta deles), o que se espera de fato da classe política, como gerir pessoas em vulnerabilidade social, e tantos outros desafios. São diversos problemas para serem resolvidos em um curto período de tempo e cada escolha pode determinar a vida e a morte de milhares de pessoas. No meio disso tudo, está também à classe artística, que lida há tempos com vários tipos de ataques e falta de investimentos. Na nossa sociedade, muitos partem da idéia da arte como algo supérfluo, dispensável ou até mesmo um hobby. Há, portanto, um preconceito estrutural (assim como o racismo estrutural abordado no espetáculo) em relação às artes, provavelmente atrelado à crença do valor mercadológico das profissões, no sentido de que há algumas mais importantes e "úteis" que outras. Com a pandemia, novas formas de “existência” têm sido pensadas para os artistas, não sem controvérsias e polêmicas, já que temporadas de espetáculos foram todos cancelados. Em meio a uma crise que escancara a insuficiência de políticas públicas para todos os setores da sociedade, os espetáculos teatrais, que tanto dependem do público (presença), tem estado parados.  Para alguns artistas, uma alternativa tem sido as transmissões ao vivo através de plataformas virtuais. “A última negra” consegue se apropriar da definição de “existir” perfeitamente e trabalhar com ressignificações conceituais em relação à estrutura, a forma de compartilhar narrativas e sua relação com o espectador. O Coletivo Projeto Gompa consegue criar uma experiência viva que se aproxima muito de uma experiência teatral, pois se utiliza das plataformas, mas faz o evento teatral acontecer como a divulgação, a bilheteria, pré-estréia, estréia e a fruição da produção através do youtube. É possível afirmar que a emergência de outro mundo está fazendo com que artistas literalmente se reinventem cada vez mais, e se coloquem na fronteira de uma criação híbrida e criem abismos e arestas de novas possibilidades.

    A produção cultural negra tem feito irromper novas linguagens insurgentes ao processo da padronização cultural que ainda se deixa respingar com culturas eurocentradas. Parecem surgir outros processos vitais para o diálogo entre culturas. Uma nova régua para indicar outro compasso para um humanismo além do eixo europeu. Ineditismos culturais advindos de um olhar cosmopolita e subversivo vivenciado nas redes de comunicação artística das margens contemporâneas. Muitos artistas e influenciadores digitais negros conseguiram ganhar status de celebridade e grande projeção através das redes sociais, fato que nas mídias tradicionais jamais conseguiriam “existir” ainda por causa dessa estrutura racista que perdura na sociedade.

    Isso também tem a ver com a cosmovisão africana, uma maneira subjetiva de ver e entender o mundo, principalmente as relações humanas e os papéis dos indivíduos na sociedade, assim como respostas a questões filosóficas básicas, como a finalidade da existência humana. Ou seja, seguimos falando de “existências” e de como respondemos as questões do nosso tempo. “A Última Negra” se apresenta como espetáculo virtual e se pauta na criação de uma história original, em todos os sentidos, desde o argumento até a concretização do projeto e o modo de compartilhamento e fruição. A começar pela dramaturgia de Pedro Bertoldi que nos provoca acerca de como é ser a última pessoa negra no Brasil. No texto 100 anos após o incêndio do Museu Nacional, uma arqueóloga encontra o corpo de uma mulher negra congelada. Inexplicavelmente, Dandara (entendedores entenderão a escolha deste nome) sobreviveu a mais de um século abaixo de zero grau e sua sobrevivência em um Brasil onde há muitos anos não existem vestígios de pessoas negras, faz reacender as discussões sobre o racismo institucional existente no país. É interessante essa abordagem que nos desloca para um Brasil distópico, até mesmo absurdo, para refletir sobre o racismo, evidenciando que mesmo num mundo distante ainda perduram as chagas provocadas pela estrutura racial.  A narrativa trata o preconceito racial com um humor refinado e crítico. Aponta para a ferida, sem tocar diretamente nela. Constrói fricções entre o universo real e ficcional. Propõe uma reflexão sobre o lugar do negro na sociedade contemporânea e isso é feito a partir de uma visão irônica e, algumas vezes, até cômica, como pode ser observado na cena do repórter, por exemplo, na construção de um humor ácido e crítico.

    A experiência virtual se desdobra em tempos e janelas distintos. É uma brincadeira, uma crítica aos inimigos institucionalizados, uma proposta para entender se realmente são inimigos ou se isso é fruto de uma manipulação promovida pela estrutura social.Podemos também fazer uma leitura afrofuturista que flerta com uma estética que combina elementos de memória, ficção científica e histórica, fantasia, arte africana e arte da diáspora africana, com cosmologias negras para criticar não só os dilemas atuais da estrutura racial, mas também para revisar, principalmente revisar, interrogar e reexaminar os eventos históricos do passado que aqui remete ao congelamento de uma mulher negra durante 100 anos.  

Designer gráfico: Mitti Mendonça

    A narrativa evita, conseqüentemente, elementos folclóricos clichês que o sistema estabelece. A dramaturgia não se detém nos aspectos geralmente comuns quando se trata de narrativas negras. O texto de Pedro Bertoldi desvela várias reflexões que são caras para o teatro negro brasileiro e, sem sombra de dúvida, merece ser lido, assistido, estudado e divulgado por aqueles que se dedicam aos estudos afro-brasileiros. Sem dúvida um texto que mesmo numa experiência virtual te coloca dentro da situação proposta. E lógico que exaltar o texto de Bertoldi é necessário, porém ressaltar a trilha sonora original de Álvaro RosaCosta é dizer que ela é um dos elementos que me fazer mergulhar na fruição do trabalho, pois é presente em muitos momentos, e a música funciona para dizer coisas na cena sem ser tão óbvio e colocar o espectador e sua atenção em outros lugares. Música é dramaturgia. É pausa. É signo. É existência e presença. Embora muitas vezes não seja notada pelo espectador, a trilha sonora é fator narrativo que integra a obra cênica. Assim como a direção de imagens e edição de Júlio Estevan que faz com que a experiência seja feliz e potente. Percebemos que não é apenas um teatro filmado, ou imagens captadas de qualquer modo, pelo contrário, imagens com muita qualidade que evidenciam cada personagem e seus espaços dentro da narrativa. E produzir hoje uma leitura sobre um espetáculo virtual é destacar esse profissional que geralmente num espetáculo presencial não teria tamanha importância, mas nesse caso é, tão ou mais importante como os demais profissionais do trabalho.          

    Hayline Vitória está à frente do elenco e seu trabalho é sensacional, pois a câmera revela ângulos, detalhes, expressões, pulsações que no teatro não percebemos. A relação com a câmera é diferente da relação com um espectador no teatro presencial e esse trabalho fica evidente aqui. Hayline personifica Dandara, a última negra que ficou congelada nos últimos 100 anos. Mas todo o elenco está muito bem dentro desta proposta. Álvaro RosaCosta, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra, Fabiane Severo e Henrique Gonçalves cada um no seu quadrado desenvolvem um ótimo trabalho que difere do trabalho que já conheço nos palcos e isso é bom, por se tratar de outra linguagem. Confesso que quando vi o início das divulgações e percebi que o Projeto Gompa estava produzindo um novo trabalho pautado em questões raciais e que trazia em sua equipe técnica a maioria de artistas não negros isso de certa forma me provocou, fiquei feliz por um lado e intrigado por outro. Mas depois de assistir ao trabalho, constatei a necessidade dos artistas não negros na concretização do trabalho e principalmente a presença de Silvana Rodrigues na co-direção juntamente com Camila Bauer, pois sabendo da competência e força criativa de Bauer constatada em outros trabalhos, mas que no que diz respeito a questões raciais, era necessária a presença de uma artista tão competente como a citada Bauer, mas que pode contribuir com outros olhares e com uma “vivência preta” acerca da obra que assistimos. Não é que seja proibido coletivo ou artistas não negros pautarem a negritude em suas propostas, pelo contrário, é necessário e salutar dialogar cada vez mais sobre a negritude na arte, mas deve-se cuidar para que as propostas não sejam esvaziadas de sentidos e principalmente do discurso, o que não é o caso deste projeto. Espero que não seja mal compreendido, porém é necessário refletir sobre o esvaziamento na hora de se apropriar de elementos culturalmente ligados a negritude, que já é algo complexo por si só, mas que é importante refletir sobre isso. Por se tratar de uma experiência virtual creio que a produção voltará a ser exibida e merece ser assistida pela qualidade e principalmente pela reflexão provocada pelo texto de Bertoldi.  

 Ficha Técnica:

 História original e dramaturgia: Pedro Bertoldi

Direção: Silvana Rodrigues e Camila Bauer

Elenco: Hayline Vitória, Álvaro RosaCosta, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra, Fabiane Severo, Henrique Gonçalves.

Direção de imagens e edição: Júlio Estevan

Trilha sonora original e edição de som: Álvaro RosaCosta

Orientação de figurino: Fabiane Severo e Guilherme Ferrêra

Designer gráfico: Mitti Mendonça

Fotografia e criação de teasers: Júlio Estevan

Assessoria e produção de conteúdo de mídias: Tainã Rosa

Assessoria de imprensa: Thais Silveira

Produção de vídeo: Júlio Estevan

Produção musical: Álvaro RosaCosta

Produção administrativa/cultural: Hayline Vitória

Produção executiva: Silvia Duarte

Realização: Projeto GOMPA

Financiamento: Pró Cultura RS - Lei de incentivo e Fundo, Secretaria da Cultura - Governo do Estado do Rio Grande do Sul

Apoio: EntreAtos


*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002.  Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Participou do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É integrante da GiraDramatúrgica - Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra coordenado por Carlos Canarin/UNESPAR. Professor do Espaço do Ator e da extensão UNISINOS.