COSMOVISÕES E EXISTÊNCIAS NEGRAS
| *por Diego Ferreira
Inicio minhas divagações sobre “A Última Negra”
buscando refletir sobre a existência
e sua relação entre teatro e negritudes. Primeiro busco pensar o teatro dentro do quadro atual em que nos
encontramos e vislumbrar novas possibilidades de existência daqui em diante. A definição do verbo “existir” diz que “é ter existência real, ter presença viva, viver, ser”. Existir fala
de presença viva. E PRESENÇA nas artes da cena tem um sentido amplo no que
tange a uma presença real, mesmo que virtualizada como é o caso de “A Última Negra”.
O mundo já não é mais o mesmo com a atual pandemia. Países de todo o planeta
estão sofrendo as conseqüências desta crise, que são econômicas, sociais e
também psicológicas. Foi dada uma pausa no cotidiano da humanidade e,
compulsoriamente, cada indivíduo é levado a pensar sobre sua forma de existir no mundo: o trabalho, as
relações, a maneira como utilizamos nossos recursos (ou a falta deles), o que
se espera de fato da classe política, como gerir pessoas em vulnerabilidade
social, e tantos outros desafios. São diversos problemas para serem resolvidos
em um curto período de tempo e cada escolha pode determinar a vida e a morte de
milhares de pessoas. No meio disso tudo, está também à classe artística, que
lida há tempos com vários tipos de ataques e falta de investimentos. Na nossa
sociedade, muitos partem da idéia da arte como algo supérfluo, dispensável ou
até mesmo um hobby. Há, portanto, um preconceito estrutural (assim como o racismo
estrutural abordado no espetáculo) em relação às artes, provavelmente atrelado
à crença do valor mercadológico das profissões, no sentido de que há algumas
mais importantes e "úteis" que outras. Com a pandemia, novas formas
de “existência” têm sido pensadas
para os artistas, não sem controvérsias e polêmicas, já que temporadas de
espetáculos foram todos cancelados. Em meio a uma crise que escancara a
insuficiência de políticas públicas para todos os setores da sociedade, os
espetáculos teatrais, que tanto dependem do público (presença), tem estado
parados. Para alguns artistas, uma
alternativa tem sido as transmissões ao vivo através de plataformas virtuais.
“A última negra” consegue se apropriar da definição de “existir” perfeitamente e trabalhar com ressignificações
conceituais em relação à estrutura, a forma de compartilhar narrativas e sua
relação com o espectador. O Coletivo Projeto Gompa consegue criar uma
experiência viva que se aproxima muito de uma experiência teatral, pois se
utiliza das plataformas, mas faz o evento teatral acontecer como a divulgação,
a bilheteria, pré-estréia, estréia e a fruição da produção através do youtube. É
possível afirmar que a emergência de outro mundo está fazendo com que artistas
literalmente se reinventem cada vez mais, e se coloquem na fronteira de uma
criação híbrida e criem abismos e arestas de novas possibilidades.
A produção cultural
negra tem feito irromper novas linguagens insurgentes ao processo da padronização
cultural que ainda se deixa respingar com culturas eurocentradas. Parecem surgir
outros processos vitais para o diálogo entre culturas. Uma nova régua para
indicar outro compasso para um humanismo além do eixo europeu. Ineditismos
culturais advindos de um olhar cosmopolita e subversivo vivenciado nas redes de
comunicação artística das margens contemporâneas. Muitos artistas e
influenciadores digitais negros conseguiram ganhar status de celebridade e
grande projeção através das redes sociais, fato que nas mídias tradicionais
jamais conseguiriam “existir” ainda por causa dessa estrutura racista que
perdura na sociedade.
Isso também tem a ver
com a cosmovisão africana, uma maneira subjetiva de ver e entender o mundo, principalmente
as relações humanas e os papéis dos indivíduos na sociedade, assim como
respostas a questões filosóficas básicas, como a finalidade da existência
humana. Ou seja, seguimos falando de “existências”
e de como respondemos as questões do nosso tempo. “A Última Negra” se
apresenta como espetáculo virtual e se pauta na criação de uma história
original, em todos os sentidos, desde o argumento até a concretização do
projeto e o modo de compartilhamento e fruição. A começar pela dramaturgia de
Pedro Bertoldi que nos provoca acerca de como é ser a última pessoa negra no
Brasil. No texto 100 anos após o incêndio do Museu Nacional, uma arqueóloga
encontra o corpo de uma mulher negra congelada. Inexplicavelmente, Dandara
(entendedores entenderão a escolha deste nome) sobreviveu a mais de um século
abaixo de zero grau e sua sobrevivência em um Brasil onde há muitos anos não
existem vestígios de pessoas negras, faz reacender as discussões sobre o
racismo institucional existente no país. É interessante essa abordagem que nos desloca
para um Brasil distópico, até mesmo absurdo, para refletir sobre o racismo,
evidenciando que mesmo num mundo distante ainda perduram as chagas provocadas
pela estrutura racial. A narrativa trata o preconceito racial com um humor
refinado e crítico. Aponta para a ferida, sem tocar diretamente nela. Constrói fricções entre o universo real e ficcional. Propõe uma reflexão sobre o lugar do
negro na sociedade contemporânea e isso é feito a partir de uma visão irônica
e, algumas vezes, até cômica, como pode ser observado na cena do repórter, por
exemplo, na construção de um humor ácido e crítico.
A experiência virtual se
desdobra em tempos e janelas distintos. É uma brincadeira, uma crítica aos
inimigos institucionalizados, uma proposta para entender se realmente são
inimigos ou se isso é fruto de uma manipulação promovida pela estrutura social.Podemos também fazer uma
leitura afrofuturista que flerta com uma estética que combina elementos
de memória, ficção científica e histórica, fantasia, arte africana e arte da
diáspora africana, com cosmologias negras para criticar não só os dilemas
atuais da estrutura racial, mas também para revisar, principalmente revisar, interrogar
e reexaminar os eventos históricos do passado que aqui remete ao congelamento
de uma mulher negra durante 100 anos.
Designer gráfico: Mitti Mendonça
A narrativa evita, conseqüentemente,
elementos folclóricos clichês que o sistema estabelece. A dramaturgia não se detém
nos aspectos geralmente comuns quando se trata de narrativas negras. O texto de
Pedro Bertoldi desvela várias reflexões que são caras para o teatro negro brasileiro
e, sem sombra de dúvida, merece ser lido, assistido, estudado e divulgado por
aqueles que se dedicam aos estudos afro-brasileiros. Sem dúvida um texto que
mesmo numa experiência virtual te coloca dentro da situação proposta. E lógico
que exaltar o texto de Bertoldi é necessário, porém ressaltar a trilha sonora
original de Álvaro RosaCosta é dizer que ela é um dos elementos que me fazer
mergulhar na fruição do trabalho, pois é presente em muitos momentos, e a música funciona para dizer coisas na cena sem ser tão óbvio e
colocar o espectador e sua atenção em outros lugares. Música é dramaturgia. É
pausa. É signo. É existência e
presença. Embora muitas vezes não seja notada pelo espectador,
a trilha sonora é fator narrativo que integra a obra cênica. Assim como a direção
de imagens e edição de Júlio Estevan que faz com que a experiência seja feliz e
potente. Percebemos que não é apenas um teatro filmado, ou imagens captadas de
qualquer modo, pelo contrário, imagens com muita qualidade que evidenciam cada
personagem e seus espaços dentro da narrativa. E produzir hoje uma leitura
sobre um espetáculo virtual é destacar esse profissional que geralmente num
espetáculo presencial não teria tamanha importância, mas nesse caso é, tão ou
mais importante como os demais profissionais do trabalho.
Hayline Vitória está à
frente do elenco e seu trabalho é sensacional, pois a câmera revela ângulos,
detalhes, expressões, pulsações que no teatro não percebemos. A relação com a
câmera é diferente da relação com um espectador no teatro presencial e esse
trabalho fica evidente aqui. Hayline personifica Dandara, a última negra que
ficou congelada nos últimos 100 anos. Mas todo o elenco está muito bem dentro
desta proposta. Álvaro RosaCosta, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra, Fabiane
Severo e Henrique Gonçalves cada um no seu quadrado desenvolvem um ótimo
trabalho que difere do trabalho que já conheço nos palcos e isso é bom, por se
tratar de outra linguagem. Confesso que quando vi o início das divulgações e percebi
que o Projeto Gompa estava produzindo um novo trabalho pautado em questões
raciais e que trazia em sua equipe técnica a maioria de artistas não negros
isso de certa forma me provocou, fiquei feliz por um lado e intrigado por
outro. Mas depois de assistir ao trabalho, constatei a necessidade dos artistas
não negros na concretização do trabalho e principalmente a presença de Silvana
Rodrigues na co-direção juntamente com Camila Bauer, pois sabendo da
competência e força criativa de Bauer constatada em outros trabalhos, mas que
no que diz respeito a questões raciais, era necessária a presença de uma
artista tão competente como a citada Bauer, mas que pode contribuir com outros
olhares e com uma “vivência preta” acerca da obra que assistimos. Não é que seja
proibido coletivo ou artistas não negros pautarem a negritude em suas
propostas, pelo contrário, é necessário e salutar dialogar cada vez mais sobre
a negritude na arte, mas deve-se cuidar para que as propostas não sejam
esvaziadas de sentidos e principalmente do discurso, o que não é o caso deste
projeto. Espero que não seja mal compreendido, porém é necessário refletir
sobre o esvaziamento na hora de se apropriar de elementos culturalmente ligados
a negritude, que já é algo complexo por si só, mas que é importante refletir
sobre isso. Por se tratar de uma experiência virtual creio que a produção
voltará a ser exibida e merece ser assistida pela qualidade e principalmente pela
reflexão provocada pelo texto de Bertoldi.
Ficha Técnica:
História original e
dramaturgia: Pedro Bertoldi
Direção: Silvana
Rodrigues e Camila Bauer
Elenco: Hayline
Vitória, Álvaro RosaCosta, Fabrício Zavareze, Guilherme Ferrêra, Fabiane
Severo, Henrique Gonçalves.
Direção de imagens e
edição: Júlio Estevan
Trilha sonora original
e edição de som: Álvaro RosaCosta
Orientação de figurino:
Fabiane Severo e Guilherme Ferrêra
Designer gráfico: Mitti
Mendonça
Fotografia e criação de
teasers: Júlio Estevan
Assessoria e produção
de conteúdo de mídias: Tainã Rosa
Assessoria de imprensa:
Thais Silveira
Produção de vídeo:
Júlio Estevan
Produção musical:
Álvaro RosaCosta
Produção
administrativa/cultural: Hayline Vitória
Produção executiva:
Silvia Duarte
Realização: Projeto
GOMPA
Financiamento: Pró
Cultura RS - Lei de incentivo e Fundo, Secretaria da Cultura - Governo do
Estado do Rio Grande do Sul
Apoio: EntreAtos
*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002. Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Participou do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É integrante da GiraDramatúrgica - Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra coordenado por Carlos Canarin/UNESPAR. Professor do Espaço do Ator e da extensão UNISINOS.