BEIJO PRETO DE MOBILIZAÇÃO E PROVOCAÇÃO
*por Diego Ferreira
O espaço da Galeria La Photo é amplo, lindo e branco. Sim, demasiado branco e ao se instalar nesse lugar o espetáculo "Beije seu preto em praça pública!" consegue subverter esse espaço simbólico de contemplação para evocar uma obra de arte preta de mobilização, que precisa de um pouco de atenção e tempo para ser desvelada a partir das muitas camadas na qual o trabalho foi estruturado. A frase "Beije sua preta em praça pública" ganhou notoriedade ao estampar a capa de uma publicação do MNU (Movimento Negro Unificado) e carregava consigo uma reflexão importante que é o de estabelecer o espaço público como um local de trocas afetivas para negros. E eis que Rafael Domingues se utiliza dessa frase para construir o seu "Beije seu preto em praça pública!" e dentro desse imaginário (e galeria) branco evocar em cena o corpo preto do ator, um corpo muitas vezes hiperssexualizado, mas através das camadas e tessituras propostas pelo espetáculo nos permite a sim, enxergar um corpo preto digno de ser amado e respeitado, mas para chegarmos a dignidade muitas vezes esse mesmo corpo perpassa caminhos dolorosos, cansativos e devastadores. E esses caminhos são evidenciados justamente pela estrutura do espetáculo que faz alusão a cartas destinadas a Madame Satã, figura marginal carioca que personifica a potência do sujeito preto e gay em suas diversas narrativas. E essa estrutura dramatúrgica permite que o ator dialogue com um interlocutor mítico mas também dialoga em muitos momentos com a platéia fazendo com que o espectador se torne muito mais do que um voyer e passa a ser espectador ativo, no sentido de não estar ali apenas para contemplar uma obra de arte dentro do museu (teatro!), mas participar de modo reflexivo e também dentro da cena. Por este aspecto o espetáculo dá uma porrada no espectador por estilhaçar uma visão muitas vezes romantizada da vida de pessoas pretas, e aqui vemos a cisão das frustações do amor com a coragem de ser bixa preta dentro de uma sociedade que segue violentando e tentando expurgar esses corpos da sociedade. Mas a porrada transforma-se em afeto e carinho muito pela estrutura na qual foi construída a peça que abraça o espectador através da entrega do Rafael Domingues e das suas narrativas sejam elas corporais, estéticas, politicas e dramáticas. Um trabalho que trás a cena gaúcha um novo folego justamente pela entrega de toda a equipe que fez acontecer um espetáculo que é provocativo, belo e político.
Duração: 50 min
Ficha técnica:
Elenco: Rafael Domingues
Direção: Bruno Fernandes e Fernanda Fiuza
Fotografia: Renê de Palma
Iluminação: Patrícia de la Rocha
Trilha sonora: Anderson Vasconcelos
Figurino: Iago Jara
Orientação: Thiago Pirajira
Agradecimento especial: Regina Peduzzi Protskof, Vanessa Fiuza, Diogo Silveira, Batista Freire.
*Diego Ferreira - Editor do Olhares da Cena. Dramaturgo, Professor e Crítico de Teatro. Graduado em Teatro/UERGS. Curador do 28º Porto Alegre em Cena. Integrante da Comissão Julgadora do 9º Prêmio Nacional de Dramaturgia Carlos Carvalho. Integrante da Comissão do Prêmio Tibicuera de Teatro Infanto-Juvenil 2023. Vencedor do Prêmio Açorianos 2021 na categoria Ação Periférica com o projeto "Três tempos para a Dramaturgia Negra no RS."