terça-feira, 8 de dezembro de 2020

PEÇA (RS) - CRÍTICA


Por Diego Ferreira - Especial MOSTRA CURA*

 

Cena. Peça. Projeção. Presença.

Peça - substantivo feminino

A etimologia da palavra “peça” trás duas definições: parte de um todo que tem existência autônoma e cada elemento de um conjunto. Percebo esse trabalho da Rita exatamente como uma peça, uma parte de um todo que tem existência própria, ou seja, é apenas uma peça que faz parte de uma engrenagem que parte das subjetividades dos corpos com cor na arte contemporânea.

Em cena a performer pontua as interferências do corpo com o ambiente. A partir do seu corpo nu propõe movimentos que se alteram em acelerações, pausas, repetições e variações. Rita Rosa Lende se despe do figurino para revelar no seu corpo a liberdade em se dançar, em se lançar, em provocar e em produzir um projeto estético e político repleto de significados e incrivelmente belo. O corpo enquanto propulsor de narrativas negras. Alguns enxergaram somente a nudez do corpo, mas é preciso ir além para poder captar um trabalho sério, digno, ousado e pontuado por questões que implicam violências, no plural mesmo, violências que o corpo da mulher negra está sujeito.  “Peça” é uma performance que está impregnada de conceitos, mas não conceitos esvaziados, conceitos impregnados de vida que marca o percurso da artista. Logo no inicio percebemos o corpo servindo como tela para projeção e um áudio com vozes dissonantes em inglês, ou seja, uma provocação logo no inicio de perceber esse estranhamento e barreira com a língua. Preciso entender o que é dito ou me permito a experimentar o que me é proposto? A filósofa e escritora ativista norte-americana Ângela Davis afirmou numa conferência que “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”. Trago essa citação da Davis para ilustrar ou quem sabe traduzir o inicio da performance, mas seria muita ousadia da minha parte tentar traduzir algo que justamente não é palatável.

Projeção.

Vídeo.

Corpo.

Porco.

Uma das poucas imagens que me salta na projeção é a de um porco e metaforicamente a figura do porco na filosofia representa a problemática da convivência humana. De certa forma, o trabalho trás marcado no corpo essa questão que está posta na atualidade, de que forma é possível conviver em comunidades respeitando outras formas de habitar, outras formas onde as diferenças brilhem.

Pequenos espasmos

Dança da dor

Expressividade dilatada

Carne negra

Corpo negro exposto

Pulsações

Silhueta de noiva

Violência

Violência

Violência

Sensações que me acometem e me colocam em outros lugares. Um trabalho intenso que me provoca com os deslocamentos da Rita. Mas uma das reflexões da performance que me provoca é justamente o momento em que Rita executa um samba. E esta ação de sambar problematiza a questão do estereótipo da mulher negra na sociedade. O samba enquanto erotização da mulher negra na cultura brasileira. O samba enquanto objetificação da mulher negra na cultura brasileira e o que esse corpo negro sambando pode reverberar no imaginário brasileiro. Não que mulheres negras não possam sambar, mas a representatividade que isso pode desvelar é o que precisamos nos atentar e discutir. Descolonizar e libertar o corpo negro e evidenciar o que ele tem de potência é o caminho. E é justamente isso que eu percebo nesta proposta de Rita Rosa Lende: um corpo potente, dilatado e liberto que pode tudo o que ele se propõe.

 

Direção:Rita Rosa Lende

Autoria:Rita Rosa Lende

Tradução:João Kowaks de Castro

Adaptação:Rita Rosa Lende

Elenco/Performer:Rita Rosa Lende

Iluminação:Carol Zimmer

Trilha Sonora:Rita Rosa Lende

Figurino:Rita Rosa Lende

Duração:30 minutos

Classificação:18 anos

 

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.