Cena. Peça. Projeção. Presença.
Peça - substantivo feminino
A etimologia da palavra “peça” trás duas
definições: parte de um todo que tem existência autônoma e cada elemento de um
conjunto. Percebo esse trabalho da Rita exatamente como uma peça, uma parte de
um todo que tem existência própria, ou seja, é apenas uma peça que faz parte de
uma engrenagem que parte das subjetividades dos corpos com cor na arte
contemporânea.
Em cena a performer pontua as interferências do
corpo com o ambiente. A partir do seu corpo nu propõe movimentos que se alteram
em acelerações, pausas, repetições e variações. Rita Rosa Lende se despe do
figurino para revelar no seu corpo a liberdade em se dançar, em se lançar, em
provocar e em produzir um projeto estético e político repleto de significados e
incrivelmente belo. O corpo enquanto propulsor de narrativas negras. Alguns
enxergaram somente a nudez do corpo, mas é preciso ir além para poder captar um
trabalho sério, digno, ousado e pontuado por questões que implicam violências,
no plural mesmo, violências que o corpo da mulher negra está sujeito. “Peça” é uma performance que está impregnada
de conceitos, mas não conceitos esvaziados, conceitos impregnados de vida que
marca o percurso da artista. Logo no inicio percebemos o corpo servindo como
tela para projeção e um áudio com vozes dissonantes em inglês, ou seja, uma
provocação logo no inicio de perceber esse estranhamento e barreira com a
língua. Preciso entender o que é dito ou me permito a experimentar o que me é
proposto? A filósofa e escritora ativista norte-americana Ângela Davis
afirmou numa conferência que “Quando a mulher negra se movimenta, toda a
estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a
partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se
a base do capitalismo”. Trago essa citação da Davis para ilustrar ou quem sabe
traduzir o inicio da performance, mas seria muita ousadia da minha parte tentar
traduzir algo que justamente não é palatável.
Projeção.
Vídeo.
Corpo.
Porco.
Uma das poucas imagens que me salta na projeção é a
de um porco e metaforicamente a figura do porco na filosofia representa a
problemática da convivência humana. De certa forma, o trabalho trás marcado no
corpo essa questão que está posta na atualidade, de que forma é possível
conviver em comunidades respeitando outras formas de habitar, outras formas onde
as diferenças brilhem.
Pequenos espasmos
Dança da dor
Expressividade dilatada
Carne negra
Corpo negro exposto
Pulsações
Silhueta de noiva
Violência
Violência
Violência
Sensações que me acometem e me colocam em outros
lugares. Um trabalho intenso que me provoca com os deslocamentos da Rita. Mas
uma das reflexões da performance que me provoca é justamente o momento em que
Rita executa um samba. E esta ação de sambar problematiza a questão do
estereótipo da mulher negra na sociedade. O samba enquanto erotização da mulher
negra na cultura brasileira. O samba enquanto objetificação da mulher negra na
cultura brasileira e o que esse corpo negro sambando pode reverberar no imaginário
brasileiro. Não que mulheres negras não possam sambar, mas a representatividade
que isso pode desvelar é o que precisamos nos atentar e discutir. Descolonizar
e libertar o corpo negro e evidenciar o que ele tem de potência é o caminho. E
é justamente isso que eu percebo nesta proposta de Rita Rosa Lende: um corpo
potente, dilatado e liberto que pode tudo o que ele se propõe.
Direção:Rita Rosa Lende
Autoria:Rita Rosa Lende
Tradução:João Kowaks de Castro
Adaptação:Rita Rosa Lende
Elenco/Performer:Rita Rosa Lende
Iluminação:Carol Zimmer
Trilha
Sonora:Rita
Rosa Lende
Figurino:Rita Rosa Lende
Duração:30 minutos
Classificação:18 anos