domingo, 27 de outubro de 2019

ALICE - ALÉM DA TOCA DO COELHO (RS)


CLÁSSICO REINVENTADO COM EXCELÊNCIA

por Diego Ferreira*

É sempre bom assistir clássicos no teatro.
É sempre bom assistir clássicos bem feitos no teatro.
É sempre bom assistir clássicos reinventados no teatro, sem perder a essência e ainda por cima executado com excelência. 
A narrativa de "Alice no país das maravilhas" é um clássico da literatura mundial e por isso já gerou uma gama de adaptações para o teatro, cinema e TV e faz parte do imaginário de crianças e adultos. Pós a adaptação cinematográfica  de Tim Burton, parece difícil imaginar que algo novo ainda possa surgir, mas este trabalho da Soul Produções surpreende no sentido de trabalhar questões sobre as diferenças através da obra sem ser didático. Já sabemos de antemão tudo o que vai acontecer, mas aqui o "como" é feito, é o que traz inventividade ao espetáculo. Sue Gotardo foi bastante feliz na direção pois o colocar quatro atores  se revezando na construção de todas as personagens, acerta em também provocar o espectador colocando em cena quatro "Alices", o que gera inquietações interessantes e importantes de serem levantadas na atualidade e que também é um reflexo das metamorfoses a que a personagem é submetida ao longo do espetáculo. 
A montagem tem uma dinâmica que brinca o tempo inteiro com as situações e o ritmo das ações. A construção do imaginário surrealista é criado através da direção que foi rigorosa e inventiva, explorando muito bem o tempo/espaço através de seus corpos que criam movimentos físicos que ajudam a compor este outro universo. A cenografia de Alex Limberger e Daniel Fetter nos coloca em diversos planos através do movimento provocado pelos atores e principalmente pela iluminação de Marga Ferreira que além de criar ambientes distintos consegue criar uma poesia imagética. Outro ponto positivo são os objetos cênicos criados por Gustavo Dienstmann que através de materiais reutilizados dão um fôlego a encenação, como a cena do desaniversário. Cau Netto através de sua trilha sonora consegue criar espaços para que o público embarque com Alice no País das maravilhas, principalmente pelas canções que brincam com paródias de músicas como a da Lady Gaga, por exemplo, que além de serem hilárias são muito bem construídas através de arranjos e bem executadas pelo elenco. Daniel Lion como sempre criativo, demonstra conhecer não apenas o ofício de figurinista, mas consegue criar sempre soluções criativas pois também é artista do plco e isso faz toda a diferença. Todos os figurinos são extremamente belos e funcionais, como o da borboleta, do cacto, da Rainha de Copas. 
O elenco é ótimo e me surpreende pelo fato de encontrar Thiago Silva como ator, pois nestes últimos anos acompanho seu trabalho com dramaturgia e direção e aqui consegue surpreender e se articular da melhor forma possível, sua composição como cacto é hilária. Fabiana Santos também não conheci dos palcos, creio que apenas da iluminação e tem uma ótima energia nas suas composições especialmente na rainha. Luiz Manoel é um dos bons atores da capital e me surpreende sempre e aqui a sua criação do gato é boa demais. E Danuta Zaghetto na minha opinião é a atriz do ano pela série de espetáculos que participou e todos eles consegue imprimir a sua marca de ótima atriz que é, e aqui mais uma vez ela consegue diversificar e criar personalidade em cada personagem. Ou seja, se o espetáculo é bom, reflexo do bom elenco que tem e a confluência de todos os elementos estéticos que fazem parte deste Alice que encanta a todos. 

FICHA TÉCNICA 
Direção: Sue Gotardo 
Assistência de Direção: O Grupo 
Elenco: Danuta Zaghetto, Fabiana Santos, Luiz Manoel e Thiago Silva
Concepção e Dramaturgia:Danuta Zaghetto, Fabiana Santos, Luiz Manoel, Sue Gotardo e Thiago Silva;
Cenografia: Alex Limberger
Cenotécnica: Alex Limberger e Daniel Fetter
Figurino: Daniel Lion
Acessórios: Marga Ferreira
Trilha Sonora: Cau Netto
Canções Originais: Danuta Zaghetto, Fabiana Santos, Luiz Manoel 
Operação de Som: Manu Goulart
Preparação Corporal: Béthany Martínez
Coreografias: Béthany Martínez e grupo
Fotografia: Adriana Marchiori
Produção: Sue Gotardo


*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 



quarta-feira, 16 de outubro de 2019

F.R.A.M.E.S (RS)



MONTAGEM CRIATIVA TRIUNFA EM ESPAÇO NÃO CONVENCIONAL


por Diego Ferreira

F.R.A.M.E.S é o espetáculo resultante de um projeto inédito realizado em Porto Alegre, a Fábrica de Experiências Cênicas, para encenar um texto do dramaturgo Diones Camargo. O espetáculo é um mergulho numa pesquisa de linguagem que articula procedimentos teatrais da contemporaneidade, provocando o espectador e o artista participante a gerar novas abordagens e novos pontos de vista em relação a cena, transitando por algumas zonas de fronteira, tais como; a presença real (aqui e agora) do ator na cena e a referência ficcional do personagem, o real e o ficcional na dramaturgia se misturando e gerando uma terceira zona teatral, a indefinição proposital entre o território do ator e o do público, o diálogo com outras áreas artísticas e o uso de espaços não convencionais ou uso não convencional de espaços tradicionais como a Galeria La Photo na qual o projeto e o espetáculo se instalam. A produção abre frestas para que o espectador colabore com o que vê, saindo da passividade receptiva para uma atividade construtiva da cena, buscando devolver ao teatro seu caráter participativo e de reflexão através de um espetáculo vertiginoso, com um ritmo acelerado, onde cenas são criadas e personagens evocados para criar um universo que brinca com uma linguagem híbrida entre o teatro/performance e o cinema com forte inspiração no universo surrealista de David Linch. Diones Camargo mais uma vez nos presenteia com um texto que mescla narrativas rápidas, mas não rasas, sobre personagens e seus dramas vividos nos bastidores de um filme que nunca estreou. O texto é ágil e inteligente e se utiliza de uma sagacidade colocando em cena uma multiplicidade de histórias que flertam com nosso cotidiano. Carlos Ramiro merece muitos méritos pelo projeto e pela direção consistente que consegue atingir com um elenco oriundo de uma experiencia que coloca em cena atores com diferentes formações, mas no palco percebemos que o elenco é coeso, com exceção de Fernanda Petit que triunfa em cena. A montagem é criativa e se utiliza de uma concepção que abusa de elementos não tradicionais, a começar pelo espaço, seguido pela cenografia de Valeria Verba e Sheila Marafon e iluminação de Nara Maia que auxiliam muito na construção e (des)construção destes pequenos frames que constroem o todo do espetáculo. Voltando ao elenco, todos os atores tem o seu momento em cena, e estão muito a vontade na construção de suas figuras, todos muito bem preparados por Liane Venturella e Raul Voges, demonstrando o quão importante foi esta fábrica de experiências, porém é inevitável citar que Fernanda Petit está acima um degrau dos seus colegas, e isto não é dizer que ela é uma atriz melhor que os demais, pelo contrário, apenas salientar que o elenco é ótimo, porém Petit agarra com uma gana a personagem da palestrante que é a responsável por fazer uma espécie de costura da dramaturgia e arrasa na construção da sua personagem, é tocante, é profunda, é engraçada e triste ao mesmo tempo e merece o meu aplauso. Saí do teatro completamente feliz e satisfeito com o que assisti e cabe um agradecimento a Regina Protskof por transformar o seu espaço da Galeria num espaço de formação e fruição teatral e apenas isso já é relevante. 




Ficha Técnica:
Fábrica de Experiências Cênicas apresenta
Texto: Diones Camargo
Direção: Carlos Ramiro Fensterseifer
Direção de atores: Liane Venturella
Direção Coreográfica: Raul Voges
Elenco: Elison Couto, Fernanda Petit, Gabriel Messias, Gabriela Iablonovski, Henrique Araújo, Henrique Lago, Lucas Prado, Martina Pilau,  Natália Ferreira, Pâmela Mânica, Odila Bohrer, Sibele Garroni, Zé Passos
Iluminação: Nara Maia
Trilha Sonora: Ian Ramil
Cenografia e produção de arte: Valeria Verba e Sheila Marafon
Vídeos: Maurício Casiraghi
Figurinos: Carlos Ramiro Fensterseifer
Assistentes de figurinos: Liane Venturella e Titi Lopes
Produção: Carlos Ramiro Fensterseifer e Regina Protskof
Fotografia: Regina Protskof
Assessoria de imprensa: Léo Sant'Anna
Design Gráfico: Henrique Lago
Realização: Galeria La Photo e INCOMODE-TE




*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. 

domingo, 6 de outubro de 2019

HOMEM DE LUGAR NENHUM (RS)




REFLEXÃO COM OLHAR APURADO SOBRE TEMAS DO NOSSO TEMPO

por Diego Ferreira*

Homens
      Trânsito
           Lugares
                     Lugar Nenhum
                                        Lugar 
Um lugar pode ser definido pelo espaço e seus usos. Para a geografia, por exemplo, ao se acrescentar a variável “poder”, você tem o conceito de território. Ou seja, o espaço não é só a parte física, é o que o sujeito faz ali. Existe uma face material e outra humana. Teorizar sobre isso clareia algo que sabemos intuitivamente, embora às vezes nos doa constatar: é impossível revisitar os mesmos lugares. O tempo não só muda a paisagem como distancia os usos. Outras pessoas ocupam o pátio da faculdade, os bancos de praça, o boteco preferido… E os homens de teatro escolhem o palco para construir uma reflexão sobre política e amor, não necessariamente nesta ordem. "Homem de lugar nenhum" se utiliza de metáforas para se referir a lugares transitórios que não possuem significado suficiente para serem definidos como "um lugar". Lugares transitórios, passageiros, provisórios, breves. Lugar. Não lugar. Lugar nenhum. O espaço do palco é o ponto de partida que Eduardo Kraemer encontrou para transitar em cenas breves e fragmentadas sobre a condição do homem e seu espaço no nosso tempo, e para isso recorreu a diversos autores para construir um ato político e simbólico sobre questões atuais. O resultado combina uma narrativa que parte da intertextualidade e que encontra na direção de Kraemer uma estética que combina a iluminação do próprio Eduardo e o espaço cênico de Alexandre Navarro Moreira que constrói uma bela instalação que além de ser esteticamente interessante, serve de arena para o embate entre os atores destilarem suas (in)certezas. Creio que a força do espetáculo vem desta tríade formada pela direção, iluminação e cenário, lógico que a dupla de atores tem grande peso, mas a estética e a teatralidade proposta pelo olhar de Kraemer propõe um olhar diferenciado e apurado para falar sobre temas provocantes, perturbadores e conflitantes sobre nosso tempo que agoniza, que é fugaz, que é sórdido, rápido e acelerado. E tudo isso encontramos neste não lugar. Zé Adão Barbosa e Renato Del Campão são verdadeiros homens de teatro, experientes e experimentados e encontram seu lugar dentro deste verdadeiro ringue, através de um verborrágico embate de idéias, de textos, de narrativas que nos situam no lugar do homem contemporâneo e todas as questões que este homem carrega, principalmente sobre política, mas não sobre a política partidária que nos aterra a cada dia, mas sobre micro-políticas que afetam o dia a dia do homem moderno, sobre o afeto, sobre o amor. João Petrillo, Caio Lopes e Artur Gaudenzi Luzardo estão ali para presentificar o alter ego destas figuras e provocar o espectador. "Homem de lugar nenhum" é um belo espetáculo esteticamente e que em tempos de políticas infundadas e vazias, merece ser assistido, para que possamos construir juntos um reflexão sobre o nosso lugar nesta sociedade que muitas vezes preza apenas pelo material e se furta das relações humanas.



Ficha Técnica:
Autores: diversos autores clássicos e contemporâneos
Atuação/Roteiro: Zé Adão Barbosa e Renato Del Campão
Direção/Roteiro/Iluminação/ Trilha pesquisada: Eduardo Kraemer
Atores convidados: João Petrillo, Caio Lopes e Artur Gaudenzi Luzardo
Cenografia: Alexandre Navarro Moreira
Figurinos: Zé Adão Barbosa e grupo 
Vídeos/Projeções: Daniel Jainequine
Arte por: Vitor Facchi
Fotos: Luciã Lopes  e Gustavo Razzera 
Produção: Cia Teatrofídico



*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.