Por Diego
Ferreira - Especial MOSTRA CURA.*
“Sobrevivo
– Antes que o baile acabe” se coloca neste momento pandêmico como
um documentário poético, o que de fato é, um documento vivo sob a perspectiva
de um coletivo de jovens artistas pretos de Porto Alegre. É necessário e
urgente documentar e expor as memórias pessoais sob o olhar do negro e não mais
apenas sob o viés branco e colonial. “Sobrevivo” confronta, articula e reafirma
outras visões e paradigmas de ser negro e periférico no sul do Brasil. De ser
negro, periférico e artista no sul do país e isso implica em muitos aspectos.
O
documentário abre a discussão sobre o protagonismo negro e a autodeterminação,
que pretende rever processos sociais históricos de exclusão e de racismo; além
de seus reflexos na construção da “persona negra” no âmbito das linguagens
artísticas. E a cena reflete isso revelando em caráter experimental o
hibridismo de linguagens que vão de matrizes periféricas como o samba, o rap, o
funk, o sample agregando textos e narrativas que falam daqueles jovens e a
partir deles de tantos outros.
Quais
caminhos percorrer para se manter vivo? O que fazer para não se tornar
estatística de ser mais um negro morto a cada 23 segundos? Sobreviver é uma
saída? Qual o plano de fuga para sobreviver e a partir disso criar um grande
contraponto nessa construção de uma sociedade mais negra e a partir dela
constituir um discurso sobre a realidade brasileira, sobre o genocídio, feminicídio,
o racismo estrutural e, principalmente, propor uma evidência da negritude que
seja outra humanidade possível. E aí a idéia de “Sobrevivo”, que trás esse conceito
de encruzilhada, um quilombo, que é uma reunião fraterna e livre, um território
imaginário, um território imaginado, um território pensado, um território onde
se possam constituir outras formas de relação, mas que, sobretudo se faça onde
nós estamos. Descolonizar o teatro, por todos os meios
necessários, e aqui o meio escolhido foi através das plataformas digitais, mas
que ecoa do lado de cá da tela e impacta por seu apelo urgente.
“Sobrevivo” trás um misto de possibilidades e
imagens, corpos negros em deslocamentos pela cidade, vozes negras afirmando que
o nosso país é nosso lugar de fala, utilizando a referencia de Elza Soares. Uma
cena que coloca de cara Elza e Baco Exu do Blues para abertura dos trabalhos já
ganha o meu respeito justamente pelas referencias que eles trazem consigo.
Assistimos relatos, desabafos, vozes, depoimentos, tensões. Vejo corpos que dançam,
corpos que simplesmente já são simbólicos pelo fato de estar ali, pelo fato de
ser e estar, pelo fato de sobreviver. Vejo ruas, a cidade como plano de fundo,
placas de trânsito. Desvie. Pare. Sinal verde: avance. Sinal vermelho: pare.
Imagens que representam e dialogam com a realidade destes jovens. Até onde
posso avançar? Quando devo parar? Devo parar? E o que faz sentido? Como propõe
um dos atrozes: “vamos beber do que faz sentido”. O que faz sentido dentro
desta selva chamada sociedade?
Quero dizer que a Rede Espiralar consegue nos provocar
um misto de reflexões através de um trabalho extremamente sério e potente, um
desvio na forma de construir nossas narrativas a partir de muitas referencias. Um
salve especial para o elenco e todos envolvidos que nos brindas com suas potencias
que são combustíveis para muitas reflexões. Suas subjetividades perpassam a
tela e nos tocam do lado de cá.
Direção:Sandino Rafael da Silva Rosa
Dramaturgia:Espiralar, com trechos do texto
intitulado A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima
defesa, de Eugênio Lima.
Elenco / performersEslly Ramão, Cira
Dias, Gabriel Faryas, Letícia Guimarães, Maya Marqz, Phill.
Figurinos:Espiralar
Duração:60 minutos
Classificação: 14 anos
*Diego Ferreira é
Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante
da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante
do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones
Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos
de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.