terça-feira, 8 de dezembro de 2020

SOBREVIVO (RS) - CRÍTICA

 


Por Diego Ferreira - Especial MOSTRA CURA.*

 

“Sobrevivo – Antes que o baile acabe” se coloca neste momento pandêmico como um documentário poético, o que de fato é, um documento vivo sob a perspectiva de um coletivo de jovens artistas pretos de Porto Alegre. É necessário e urgente documentar e expor as memórias pessoais sob o olhar do negro e não mais apenas sob o viés branco e colonial. “Sobrevivo” confronta, articula e reafirma outras visões e paradigmas de ser negro e periférico no sul do Brasil. De ser negro, periférico e artista no sul do país e isso implica em muitos aspectos.

O documentário abre a discussão sobre o protagonismo negro e a autodeterminação, que pretende rever processos sociais históricos de exclusão e de racismo; além de seus reflexos na construção da “persona negra” no âmbito das linguagens artísticas. E a cena reflete isso revelando em caráter experimental o hibridismo de linguagens que vão de matrizes periféricas como o samba, o rap, o funk, o sample agregando textos e narrativas que falam daqueles jovens e a partir deles de tantos outros.

Quais caminhos percorrer para se manter vivo? O que fazer para não se tornar estatística de ser mais um negro morto a cada 23 segundos? Sobreviver é uma saída? Qual o plano de fuga para sobreviver e a partir disso criar um grande contraponto nessa construção de uma sociedade mais negra e a partir dela constituir um discurso sobre a realidade brasileira, sobre o genocídio, feminicídio, o racismo estrutural e, principalmente, propor uma evidência da negritude que seja outra humanidade possível. E aí a idéia de “Sobrevivo”, que trás esse conceito de encruzilhada, um quilombo, que é uma reunião fraterna e livre, um território imaginário, um território imaginado, um território pensado, um território onde se possam constituir outras formas de relação, mas que, sobretudo se faça onde nós estamos. Descolonizar o teatro, por todos os meios necessários, e aqui o meio escolhido foi através das plataformas digitais, mas que ecoa do lado de cá da tela e impacta por seu apelo urgente.

“Sobrevivo” trás um misto de possibilidades e imagens, corpos negros em deslocamentos pela cidade, vozes negras afirmando que o nosso país é nosso lugar de fala, utilizando a referencia de Elza Soares. Uma cena que coloca de cara Elza e Baco Exu do Blues para abertura dos trabalhos já ganha o meu respeito justamente pelas referencias que eles trazem consigo. Assistimos relatos, desabafos, vozes, depoimentos, tensões. Vejo corpos que dançam, corpos que simplesmente já são simbólicos pelo fato de estar ali, pelo fato de ser e estar, pelo fato de sobreviver. Vejo ruas, a cidade como plano de fundo, placas de trânsito. Desvie. Pare. Sinal verde: avance. Sinal vermelho: pare. Imagens que representam e dialogam com a realidade destes jovens. Até onde posso avançar? Quando devo parar? Devo parar? E o que faz sentido? Como propõe um dos atrozes: “vamos beber do que faz sentido”. O que faz sentido dentro desta selva chamada sociedade?

Quero dizer que a Rede Espiralar consegue nos provocar um misto de reflexões através de um trabalho extremamente sério e potente, um desvio na forma de construir nossas narrativas a partir de muitas referencias. Um salve especial para o elenco e todos envolvidos que nos brindas com suas potencias que são combustíveis para muitas reflexões. Suas subjetividades perpassam a tela e nos tocam do lado de cá.

 

Direção:Sandino Rafael da Silva Rosa

Dramaturgia:Espiralar, com trechos do texto intitulado A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa, de Eugênio Lima.

Elenco / performersEslly Ramão, Cira Dias, Gabriel Faryas, Letícia Guimarães, Maya Marqz, Phill.

Figurinos:Espiralar

Duração:60 minutos

Classificação: 14 anos

 

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve críticas no blog Olhares da Cena. Integrante da GIRADRAMATÚRGICA – Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra. Integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. Foi jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.