Por Diego Ferreira - Especial MOSTRA UMBU DAS ARTES*
“A Mulher Arrastada” foi o espetáculo de abertura da Mostra Umbú das Artes que nasce com o propósito de reunir diversos trabalhos realizados durante a pandemia por artistas e coletivos teatrais, em diversos outros formatos que não o teatro em sua essência. Nascidos mutantes, são trabalhos que se equilibram na corda bamba dos “entres”: ora investigando sua relação com o cinema, ora desbravando o meio virtual como possibilidades de novas linguagens artísticas. Expressões das artes cênicas que, através de diferentes ferramentas, encontram a sala de cinema como janela de contato com o seu público, de forma segura e presencial.
Assistir “A Mulher Arrastada” na telona foi uma experiência arrebatadora. Pude experimentar o espetáculo de modo presencial, online e agora no cinema. Penso que o trabalho funciona e emociona em qualquer plataforma que se utilizar pelo material humano que a narrativa convoca o espectador a comungar. A experiência na telona agiganta ainda mais esse manifesto que evoca o episódio ocorrido no Rio de Janeiro, uma ode contra o apagamento da memória de Cláudia da Silva Ferreira, mulher, negra, pobre, mãe que foi brutalmente assassinada e arrastada pela PM/RJ.
A escrita de Diones Camargo me toca de uma forma intensa, justamente por criar narrativas que evoquem vozes que cada vez mais precisam ser exaltadas, vozes como esta ecoem e não sejam caladas, busquem o seu lugar de fala, buscando por si só o lugar de protagonismo sem a necessidade de mediação de terceiros. “A mulher arrastada” é um texto que a começar pela estrutura, eclode o drama assim como ocorre em autores pós-modernos, colocando em cena monólogos e vozes.
O texto é permeado de memórias fragmentárias e inconstantes, ficção e realidade andam juntas, também a dimensão do tempo está desconstruída: não há noção de passado e presente, separação de eu e outro; em caráter de hibridismo (o texto é um poema dramático, narrativo, concreto, e extremamente político, uma peça manifesto); um novo estado de expressão e percepção em uma escrita que é distante da estrutura tradicional de enredo. A fragmentação do sujeito contemporâneo é alcançada esteticamente com a utilização de recursos como as figuras do HOMEM/POLICIAL que tem a função de situar os passos de Cláudia, a utilização de uma narrativa não linear, não especificação das personagens e do cenário, distorção do senso de realidade e de tempo.
A interpretação irretocável de Celina Alcântara que é simplesmente arrasadora, meticulosa e espetacular. Na tela grande Celina alcança uma força ainda maior nas vezes em que o close está focado em seu rosto. Impossível assistir a performance de Celina e não ser tocado, não ser perturbado pela força com que representa a personagem. Pedro Nambuco está no mesmo patamar de Celina e me assombra apenas através de sua presença, pois representa a força e a truculência policial branca, representa toda a bestialidade dos militares que tomam conta do poder e do estado. Nambuco representa um personagem que me dá asco, de certa forma, desde suas palavras iniciais, durante a violência que trata a mulher arrastada e até mesmo quando não tem falas, nem tampouco está em cena, mas apenas pelo fato de percebermos sua presença rondando o espaço como um lobo faminto. A dupla de atores está de parabéns pelo excelente trabalho. Assim como a direção de Adriane Mottola, que soube concatenar todos os elementos da encenação, partindo do texto de Diones, e explorando o melhor dos atores. Direção primorosa que parte de elementos simples para chegar num trabalho arrojado.
Impossível não citar a iluminação funcional de Ricardo Vivian, que além de iluminar o espaço da cena onde os atores atuam, cria uma luz perfeita que dá conta de todo espaço, desde a entrada até atrás das arquibancadas criando um ambiente muitas vezes sufocantes, como a trilha sonora de Felipe Zancanaro que se faz presente em grande parte da cena, de forma sutil, operada ao vivo, uma experiência sonora que auxilia muito na construção emotiva do filme-espetáculo.
Sigamos clamando: Claudia da Silva Ferreira, presente!
FICHA TÉCNICA
Direção: Adriane Mottola Texto:Diones Camargo Elenco:Celina Alcântara e Pedro Nambuco Iluminação:Ricardo Vivian Trilha Sonora:Felipe Zancanaro
*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002. Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Professor do Espaço do Ator e da extensão na UNISINOS. Produziu “Três tempos para a dramaturgia negra no RS” contemplado no edital Diversidade nas Culturas da Fundação Marcopolo. Foi indicado no Prêmio Açorianos 2021 em 3 categorias: Olhares da Cena na categoria Ação Formativa e o projeto "Três tempos para a dramaturgia negra no RS" nas categorias Ação Formativa e Ação Periférica.