SOMOS FEITOS DE POSSÍVEIS
por Diego Ferreira*
Refletir sobre a pluralidade e diversidade do teatro brasileiro na atualidade é indispensável. É salutar também não apenas refletir mas cada vez mais subverter as estruturas desse teatro, evitando a reprodução de modelos, práticas e principalmente narrativas distorcidas que perduraram durante muito tempo. Falar sobre o teatro brasileiro contemporâneo e não ressaltar a grande relevância que os teatros negros tem é no mínimo discutível, (para não dizer outra coisa) é necessário provocar esse diálogo para de uma vez por todas dizer que a produção negra atual é extremamente diversificada e múltipla e talvez a mais rica sob o ponto de vista estético, político e poético. E "Desfazenda - Me enterre fora desse lugar" é um excelente exemplo dessa forte articulação que está acontecendo hoje. A produção é o novo trabalho do Coletivo O Bonde de São Paulo e evidencia o trabalho de quatro excelentes interpretes, quatro corpos, quatro vozes, que propagam, multiplicam e amplificam o pensamento e narrativas de muitos corpos pretos. "Desfazenda" coloca em cena quatro personagens: 12, 13, 23 e 40. São quatro pessoas pretas que quando crianças foram salvas da guerra por um padre branco. Desde então elas vivem na fazenda deste padre, cuidando das tarefas diárias, supervisionadas por zero, um homem preto um pouco mais velho. O padre nunca sai da capela, a guerra nunca atingiu a fazenda, e sempre que os porquês são questionados, o sino soa e tudo volta a ser como antes. Ou quase sempre.
A dramaturgia de Lucas Moura é pautada pela fragmentação e intertextualidade. O discurso narrativo consegue contrastar a fabula como depoimentos pessoais criando uma multiplicidade extremamente interessante. A palavra de Moura é vida, é morte, é arma ao mesmo tempo que é alvo. A palavra é corpo/matéria. A palavra é ficção e fricção de tempos e memórias distintos. A palavra é de Lucas, ao mesmo tempo que é de 40, ao mesmo tempo de que é de Jhonny, a palavra é de 23 ao mesmo tempo que é de Marina, ao mesmo tempo que é de 12, e também 23, assim como a palavra é de Filipe, de Ailton, a palavra é de Roberta, a palavra também é minha. A palavra é texto. E o texto desvela discursos que consegue propagar a partir de sua ação uma infinidades de vozes. Texto é ritmo e poesia. Poesia visceral, urgente e emergente. O texto é estruturado em narrativas épicas evidenciado através da direção espetacular de Roberta Estrela D'alva que consegue criar muitas soluções cênicas e dispositivos que dá um ritmo alucinado ao trabalho, além de muitas camadas. Fiquei extremamente tocado com todo o espetáculo, chamado aqui de "peça-filme", mas confesso que fazia tempo que um texto não captava tanto a minha atenção como essa dramaturgia de Lucas Moura, e olha que isso acontece justamente num tempo em que o teatro chega até a recepção de forma virtual, porém isso não afetou em nada, pelo contrário, pois nesse caso a virtualidade da proposta se transforma em presença potente pelo modo de construção que conseguem cooptar o olhar e principalmente o afeto de quem está do lado de cá da tela. Texto aliado a direção criam um objeto virtual, uma peça-filme que evidencia o caráter espetacular desse modelo sem deixar de ser teatro. Estrela D'alva imprime um ritmo atrelado a toda uma plasticidade carregada numa teatralidade. A começar pelas projeções iniciais com as vozes de Grace Passô e Negra Rosa que além de nos localizar no que estamos prestes a assistir revelam alta carga poética. Depois assistimos os intérpretes se colocando em xeque o tempo topo, construindo e desconstruindo esse imaginário fabular ao mesmo tempo que nos colocam no tempo de hoje, com nossos problemas de hoje, nossas alegrias e nossas dores. Numa das passagens do texto é dito: "a gente precisa arranjar um tempo de desviar". e desviar é mudar de direção. Precisar de tempo para mudar de direção, muitas vezes será que temos esse tempo para desviar? É necessário tempo, é necessário mudar o curso das águas e "Desfazenda" consegue esse tempo para desviar e propõe uma mudança que dialoga diretamente comigo.
E porque dialoga comigo?
Dialoga porque é virtual, mas é presença
É porque é presença, é corpo, é negro
Dialoga porque tem uma fábula, mas também tem reflexão
Dialoga porque tem ritmo, tem fala, língua falada, tem rap
Dialoga porque tem ator que mesmo através da tela fala diretamente comigo
Dialoga porque o ator sou eu, e aquilo que estava escrito nos diários poderia ter sido escrito por mim
Dialoga porque a câmera guia o meu olhar.
A teatralidade latente se manifesta e materializa através da iluminação que é um dos signos presentes e que auxiliam fortemente na construção potente do trabalho. A luz de Matheus Brant executada por Gabriele Souza é espetacular, pois constrói uma estética imagética que também é signo, que também é um tecido narrativo, uma sensível dramaturgia da iluminação que é presente, é corpo, é fundamental. A luz é corte, é interrupção, é interferência, é dispositivo que revela e esconde corpos, desenha e inscreve esse corpo-espaço, num tempo presente e virtual. As cores, intensidades e temperaturas dessa luz são bem articuladas que deixam uma forte marca nessa experiência. Evidencia rostos, corpos ou partes dele, cores, preto e branco, apenas branco, apenas negro, e vermelho. E essas cores, apenas essas três cores me levam a muitos significados e metáforas como o vermelho-sangue das mortes dos corpos pretos que assistimos todos os dias e que infelizmente esse sangue vermelho/preto não é no palco do teatro, nem tão pouco virtual, mas sangue real, sangue derramado todos os dias principalmente nas favelas e periferias do nosso país.
Outro elemento importante é a trilha sonora de Dani Nega que constrói uma linda paisagem sonora, presente o tempo todo, potente e linda, linda demais, já que o texto falado também é musicalidade. O ritmo é a mola propulsora que faz rodar essa experiência. A trilha é um coração pulsando sempre mas que as vezes nem sentimos mas ela está ali presente, pulsando e emanado vida. Outro destaque são os figurinos de Ailton Barros que são funcionais, rico em detalhes mesmo todos sendo peças pretas com o avental branco. Essas cores do figurino e da iluminação dá o tom metafórico da montagem, cria alguns códigos facilmente lidos pelo espectador, como quando os interpretes utilizam o avental branco estão dentro da narrativa fabular, e quando retiram o elemento branco evocam pensamentos e memórias pessoais/coletivas. Percebe que código interessante este: quando ele , o ator, retira o elemento branco do seu figurino é quando a ilusão fabular se desfaz, ou seja, desfazendo, despindo, desconstruindo pensamentos. Desfazenda.
Então, a peça-filme é uma enorme surpresa nessa mar de incertezas, e justamente por se tratar de um espetáculo filmado, todo o reconhecimento merecido a toda a equipe de Captação de imagens, montagem e fotografia que faz o espetáculo acontecer da melhor forma possível, com alto impacto e força poética e estética graças aos trabalhos destes profissionais.
E aos quatro atores/
interpretes/vozes/corpos/subjetividades/forças/respiração/inspiração/transpiração/
Ailton Barros
Filipe Celestino
Jhonny Salaberg
Marina Esteves
Registro a minha satisfação em partilhar desse momento através desse trabalho. Todos do elenco sem exceções dinamizam e potencializam através de suas presenças diferentes estados de temporalidades. Seus corpos/vozes produzem potencias que muitas vezes contrastam com as violências da narrativa.
Em múltiplas camadas, com ambiguidades e tensões internas naquilo que se pretende fazer, "Desfazenda - Me enterrem fora desse lugar" é um grito por um aquilombamento e um desvelador daquilo que ainda se custa a ver: as ações fundantes das populações negras e o sangue preto que constitui a estruturação desse país.
Ficha Técnica
Direção: Roberta Estrela D'Alva (@estreladalva)
Dramaturgia: Lucas Moura (@lucasmouradr)
Direção Musical: Dani Nega (@daninega)
Elenco: Ailton Barros (@ailtonbarrosoficial), Filipe Celestino (@ficelestino), Jhonny Salaberg (@jhonnysalaberg) e Marina Esteves (@vimvermarina).
Vozes Mãe e Criança: Grace Passô (@gracepasso) e Negra Rosa (@meninanegrarosa).
Direção de Imagem e Montagem: Gabriela Miranda e Matheus Brant (@matheusbrant)
Direção de Fotografia: Matheus Brant
Consultoria Artística: Daniel Lima (@dcfl.daniel_lima)
Som direto: Ruben Vals (@rukuraka_)
Treinamento e desenho de spoken word: Roberta Estrela D'Alva
Produção Musical: Dani Nega
Músicas "Saci" e "Tocar o Gado": Dani Nega e Lucas Moura
Figurino: Ailton Barros
Desenvolvimento de figurino: Leonardo Carvalho (@tchaubeijotudodebom)
Operação de câmera e Efeitos óticos: Isadora Brant (@isabrant)
Desenho de Luz: Matheus Brant
Operação de Luz: Gabriele Souza (@gabezok)
Técnica de Iluminação e Traquitanas: Giovanna Kelly (giovannakmg)
Marcação de Cor: Lucas Silva Campos e Samira França
Design Gráfico: Tide Gugliano (@tidegugliano)
Legendas: Francisco Grasso
Produção: Corpo Rastreado (@corporastreado) – David Costa, Gisely Alves e Júlia Tavares (@tvrsjulia)
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto (@canal_aberto) – Marcia Marques (@marciamarquesnovaes), Carol Zeferino e Daniele Valério
Realização: O Bonde
Dramaturgia livremente inspirada no filme "Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil" de Belisario Franca (@belisariof)
*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002. Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Participou do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É integrante da GiraDramatúrgica - Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra coordenado por Carlos Canarin/UNESPAR. Professor do Espaço do Ator e da extensão na UNISINOS. Produziu “Três tempos para a dramaturgia negra no RS” contemplado no edital Diversidade nas Culturas da Fundação Marcopolo. Curador do 28º Porto Alegre em Cena/2021.