“Tropeçando
em pequenos amontoados de terras”
por Diego Ferreira*
"Tropeço" de Anderson Feliciano
lançado pela Editora Javali surge e apresenta-se como um conjunto de
textos-ilhas performáticos que os possibilitou pensar sobre a complexidade de estar negro no mundo e fabular outras
linguagens. O livro é composto por três textos curtos: “Pequeno tratado amoroso”,
“Apologia III” e “Outras Rosas”. O tempo espiralar a partir do conceito da Leda
Maria Martins revela um estudo que avalia a temporalidade na filosofia
africana. “O tempo ocidental é plasmado nas palavras e tem uma articulação de
início-meio-fim. Já no tempo africano o passado e o futuro dialogam resultando
num presente”. E creio que Feliciano
dialoga com essa articulação africana aliada aos afetos construídos a partir do
projeto apresentado na bela edição que também utiliza a dramaturgia da imagem,
através de uma memória fotográfica, mergulhando em registros familiares e
agindo como forma de ruptura de uma estrutura aristotélica. A escrita avança
enquanto articulação estética e retorna ao passado não como uma tentativa vazia
de resgate de memórias, mas na tentativa de apreender o que pedia outro devir.
Ainda hoje existe o pensamento equivocado de que a produção de narrativas
pretas discorre apenas sobre determinados temas como mazelas sociais, dores e
lutas, muitas vezes inserindo essa produção dentro de um folclore estático e
histórico, compreendendo que essa produção possui formas e conceitos estéticos
rígidos, que uma vez estabelecidos, propagam a falsa acepção do que é ou não
dramaturgia negra. "Tropeço" rompe com esse imaginário de construção
dramatúrgica que muitas vezes alicerça o texto apenas na construção e
sustentação de uma fábula, nos lançando nesse arquipélago de pequenas ilhas e
através delas conseguimos mergulhar num oceano de complexidades e afetividades
que são materializadas a partir do tecido imagético proposto no livro. E esses
textos-ilhas são potencializados quando associo ao legado de Maria Beatriz
Nascimento que nos conduz a uma reflexão sobre sua relação com o oceano
atlântico, a sua relação com essas pequenas ilhas, esses pequenos amontoados de
terras, partindo da idéia de travessia e retorno como maneiras de resgate e
conexão com ancestralidades africanas. Cabe aqui pensar na importância do mar
para as cosmologias africanas e afro-brasileiras, como esse lugar imenso e
portal de energias ancestrais, e essa configuração de "textos-ilhas"
ou “pequenos amontoados de terra” apresentada por Feliciano me coloca nesse
lugar de ancestralidade, de resgate de suas histórias pessoais, da relação com
o pai e suas memórias coletivas. Esses pequenos amontoados de terras funcionam
como recortes que não dialogam entre si, mas dialogam com o todo. E assim como
temos uma relação ancestral e metafórica com a água, falar de “amontoados de terra” é também falar de
lugar ou não-lugar, da terra que nos foi retirada e negada, e com isso essas
pequenas ilhas contribuem para o povo negro ser o dono da sua terra, da
apropriação da sua narrativa e o mais importante é o modo que essas narrativas
são escritas, colocadas no tempo/espaço, pois a escrita de Feliciano
surpreende justamente por nos apresentar um texto que se furta de apropriações
e reinterpretações de suas próprias memórias, mas vai além como no texto
experimental e performático “Outras Rosas” que faz uso da repetição de apenas
uma frase “eu não penso que deveria ter que me levantar” que além de ter uma
diagramação diferente dos demais textos, faz um paralelo com a vida de Rosa
Parks e é de uma potencialidade e tessitura narrativa ímpar e minimalista, pois
lida com a questão da repetição, do tempo/espaço, de uma elaborada construção
arrojada que se ancora no experimental mas que explode em múltiplas sensações
na recepção. “Pequeno tratado amoroso” é
o texto que abre o livro e é altamente poético, um texto construído e dividido
enquanto exercícios, mas que não perde na essência poética que dialoga com a
primeira pessoa de Anderson, mas que também produz ficções a partir de
experimentações do real. Já “Apologia III” traz fragmentos pequeninos de textos,
mas imagens de grande potência que constroem esse universo imagético a partir
dos registros fotográficos presentes na edição.
“Tropeço” nasce num tempo onde existe uma
disponibilidade para o exercício e fruição de escritas para a cena e soma-se a
uma excelente safra de dramaturgos que tem produzido novas possibilidades de
escrita para a cena criando novos horizontes para o teatro brasileiro contemporâneo.
É poético, plástico, inovador e profundo na mesma medida. Que Anderson
Feliciano possa estar nas listas de leitura de muitos artistas e ficamos aguardando
seus próximos textos na certeza de mergulhar em terras dantes nunca habitadas.
*Diego Ferreira é Dramaturgo, Diretor, Professor e Crítico Teatral. Graduado em Teatro UERGS/2009. Estudou Letras na FAPA/2002. Coordena o Núcleo de Dramaturgia do Espaço do Ator. Editor do blog Olhares da Cena. Participou do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É integrante da GiraDramatúrgica - Grupo de Estudos em Dramaturgia Negra coordenado por Carlos Canarin. Professor da escola Espaço do Ator e da UNISINOS, na extensão.