quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CUNHÃS (RS)

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ALEGORIA TEATRAL RETRATA MULHERES FORTES

por Diego Ferreira*

“No dia em que nasci, as pessoas da nossa aldeia tiveram pena da minha mãe, e ninguém deu parabéns a meu pai. Vim ao mundo durante a madrugada, quando a última estrela se apaga. Nós, pachtuns, consideramos esse um sinal auspicioso. Meu pai não tinha dinheiro para o hospital ou para uma parteira; então uma vizinha ajudou minha mãe. O primeiro bebê dos meus pais foi natimorto, mas eu vim ao mundo chorando e dando pontapés. Nasci menina num lugar onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e procriar.” 


O fragmento acima é um depoimento de Malala Yousafzai e dá o tom de "Cunhãs - Histórias de mulheres que inspiram" espetáculo do Coletivo Panapaná de Canoas. O espetáculo retrata histórias de mulheres fortes que a seu modo marcaram a história justamente por suas lutas em diversas áreas. Além de Malala surgem outras mulheres fortes como Frida Kahlo, Maria da Penha e Domitila de Chungara, e se mostra um trabalho forte, de pesquisa embasada que mergulha na vida e obra destas mulheres. Etimologicamente "Cunhã" significa mulher, esposa, companheira e o Panapaná se propõe a buscar, ressignificar e expressar a voz muitas vezes caladas destas mulheres. Partindo disso, o espetáculo se torna uma celebração festiva, política e reflexiva que oscila entre momentos que celebramos a vida como na cena de Frida Kahlo, onde vivenciamos uma festa dos mortos com música, bebidas e comidas típicas e cenas tensas como a cena de Maria da Penha, que tem forte apelo dramático, (uma das cenas que mais gosto da produção pelo equilíbrio na interpretação de Janete Costa). Outro ponto produtivo é a abertura que o trabalho tem em relação a participação do público na cena, onde em vários momentos mulheres da plateia são convidadas a participar da cena através de olhares, toques, e afetividades como o trançar o cabelo de uma espectadora, marcar a pele com uma pintura, ou até mesmo elaborar uma pintura na cena da Frida, e isso tudo é muito interessante na forma como é conduzida. "Cunhãs" me tocou profundamente de um modo bastante particular pela pesquisa e entrega das atrizes Janete Costa e Raquel Amsberg que estão de parabéns pelo trabalho consistente. A produção trabalha com várias camadas que partem de cenas alegóricas para falar de genero e política mas de um modo teatralizado e ritualístico que em muitos momentos me reporta ao trabalho desenvolvido pelo grupo Ói nóis aqui traveiz, na utilização do canto, do rito, da cena alegórica, do contexto político e nas interpretações exacerbadas, no partilhar de alimentos e bebidas e na celebração do teatro como um encontro verdadeiro de vida e arte. 
Por se tratar de um espetáculo de mulheres fortes "Cunhãs" tem um aspecto negativo que é a presença masculina do ator Gabriel Gonçalves por duas razões: a primeira é que o andamento do espetáculo já estava bastante adiantado e o espectador já estava ambientado com a sequência de história de mulheres e que até então as duas atrizes comandavam a cena, na minha opinião, a presença masculina é dispensável do painel que retrata mulheres, a participação da platéia nas intervenções é de mulheres, e o espetáculo é das mulheres, que a cena em que tanto o mineiro quanto o sindicalista aparece não agrega nada a dramaturgia feminista que o espetáculo prega, penso que Janete e Raquel tem capacidade suficiente para amarrar essa dramaturgia e apenas com suas presenças dar conta de contar a história, e segundo que a presença do ator enfraquece a narrativa pois sua interpretação é dura, enrijecida, forçada o que acaba puxando o tom da encenação para baixo diferente de Raquel e Janete que estão totalmente entregues em suas representações. Sugiro que a direção trabalhe com o ator como conseguir alcançar sutilezas no modo de se expressar, pois assim conseguirá se equiparar ao tom poético que todo o espetáculo consegue alcançar. Outra questão é que o espetáculo é demasiado longo e de como o coletivo possa resolver para conseguir prender a atenção do público durante quase duas horas de encenação. Destaque para a presença de Karine Cunha que com seu canto contagia todos os espectadores, e que quem acompanha seu trabalho sabe que através de seu canto consegue lutar também por todas as mulheres, assim como as mulheres retratadas na peça. Diante de tudo isso, quando tiver a oportunidade, "Cunhãs" merece ser assistido pelo cuidado e profissionalismo da produção e a certeza de que o Coletivo Panapaná é uma das gratas surpresas que surge na cidade de Canoas, o que exalta o bom teatro realizado na cidade que tem como representantes grupos como o "De pernas pro ar", "Grupo TIA", Khaos Cênica, Galegos e Frangalhos e o Panapaná. 


FICHA TÉCNICA:

Elenco:
Janete Costa -   Malala, Maria, Fridinha, Domitila, Mulher 1, Maria da Penha
Raquel Amsberg -  Malala, Frida, Norberta, Capitalista, Maria Degolada, Mulher 2 Sindicalista
Deborah Gonzalez - Político (na cena dos capitalistas)
Gabriel Gonçalves - Sindicalista - mineiro
Direção: Coletiva
Música “Cunhãs”:  Karine Cunha

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado e coordenador do Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.