"Hoje podemos afirmar que o Galpão já tem uma linguagem própria, onde se misturam Brecht e Stanislavski, as técnicas circenses com o teatro balinês, a música folclórica com os experimentos musicais mais contemporâneos, a dramaturgia clássica com o melodrama, Eugenio Barba com Gabriel Villela, Eduardo Garrido com Shakespeare, marujadas com Molière, teatro épico com drama psicológico, o provinciano com o universal, a tradição com a transgressão. Tudo se mistura nesse caldeirão que os alquimistas do Galpão transformam, com visão crítica e generosidade, em teatro da mais pura cepa, arte maior, celebração da vida." Paulo José - Ator e Diretor
Depois de tantos anos eu e os atores do Grupo Válvula de Escape, pudemos assitir o novo espetáculo do Grupo Galpão de Minas Gerais. Anteriormente, já tinha assistido “Um trem chamado desejo” e “Partido”. Pode-se dizer que o Grupo Galpão, sediado em Belo Horizonte, é um dos mais importantes do Brasil, além de ser um dos meus grupos preferidos . Formado há quase 30 anos por um coletivo de atores, o grupo normalmente convida diretores para seus espetáculos. Foi assim com o memorável Romeu e Julieta, dirigido por Gabriel Villela, que estreou em 1992 e rodou o mundo. Apenas uma, ou outra vez, algum ator do próprio grupo decide dirigir um espetáculo. E foi este o caso de Till, a saga de um herói torto, conduzido por Julio Maciel.
A peça conta a história de Till, um anti-herói que vem ao mundo por causa de uma aposta entre Deus e o Demônio, numa Alemanha medieval repleta de velhacos e aproveitadores. Para dar conta desses personagens, o elenco fez inclusive um trabalho de preparação baseado no arquétipo do bufão.
O Galpão é, sem dúvida, a mais alta expressão no que se refere ao teatro de grupo no Brasil. Diferente do que acontece com a maioria das outras companhias conhecidas, que são lideradas pela figura do encenador, como a Armazém Cia de Teatro, o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), de Antunes Filho, o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, a Companhia de Ópera Seca, de Gerald Thomas, ou oTeatro da Vertigem, dirigido por Antonio Araújo, o Grupo Galpão é um grupo de teatro formado essencialmente por atores, que geralmente convida diretores renomados para a criação de seus espetáculos.
A lista de contribuições significativas ao teatro brasileiro acompanha os 27 anos de existência do grupo, que já trabalhou sob a direção de Paulo José, Cacá de Carvalho, Paulo de Moraes e Gabriel Vilela; com o último realizou, em 1992, o espetáculo Romeu e Julieta, de Shakespeare, que foi aclamado em 2000, no Globe Theatre, em Londres, por público e crítica. Os próprios críticos ingleses escreveram, na época, que a peça teria resgatado a essência do teatro de Shakespeare, que é popular.
Nesse Till, o grupo Galpão resgata suas origens de Teatro de Rua; mas não um espetáculo de rua simples, feito para poucos espectadores, de forma improvisada. É uma peça com uma produção impecável, feita para o grande público, onde os atores tocam instrumentos e cantam na cena, que possui efeitos sofisticados, apesar da aparente simplicidade. A estória se passa na Idade Média, quando Deus e o Diabo apostam sobre a perdição dos homens: Se de uma alma forem retiradas algumas qualidades, inclusive a maioria da inteligência, ela conseguirá ou não manter a sua consciência?
Assim, ao nascer após mais de cinco anos de gestação, inclusive sendo retirado da barriga da mãe com a ajuda de um anão mergulhador, Till logo aprende que para sobreviver precisa usar de toda a astúcia e malandragem, enganando e subvertendo a tudo e a todos, como forma de escapar da miséria. O personagem perde sua consciência para o Diabo, e depois o desafia para recuperá-la, em um duelo hilário. Existe outra linha narrativa, dentro da trama, que conta a história de três cegos em peregrinação para Jerusalém, que criam um batalhão que combate à noite, em noites sem lua, ficando em igualdade de condições com os infiéis, e com ouvidos melhores.
Um dos pontos altos do espetáculo é o encontro dos cegos com Till, onde eles são enganados de forma primorosa pelo herói torto. Existem também alguns momentos de interação com a plateia, criados com sensibilidade, nada que espante um espectador com receio (muitas vezes com razão) de peças interativas.
O caráter popular do espetáculo, que se passa na Alemanha medieval mas poderia acontecer em outro tempo e lugar, com característica universal, é sempre reconfigurado no domínio dos atores ao envolver o público nos acontecimentos: a cena onde a mãe de Till será queimada na fogueira é um exemplo disso, quando as exclamações de “Fogueira! Fogueira!” viram uma espécie de grito de torcida de futebol.
O texto e a interpretação têm, muitas vezes um certo distanciamento, inclusive com os atores se referindo a si mesmos em terceira pessoa. Till Elenspiegel, o heroi mitológico criado pelo dramaturgo Luis Alberto de Abreu, lembra o travesso Macunaíma, de Mário de Andrade. A direção de Júlio Maciel, membro do Galpão, dá vivacidade ao texto, conseguindo realizar momentos hilários, grotescos e sublimes, se aproveitando do domínio dos atores na sua relação com o público. O cenário, de Márcio Medina, também contribui de maneira significativa, uma vez que proporciona, com alçapões e traquitanas, uma certa agilidade na movimentação da cena.
Um teatro de primeira, que está sempre questionando de forma construtiva a linguagem do próprio teatro, bem como a sua relação com a vida e as transformações: “a utopia não é um lugar no mundo, mas está na mente dos homens”. Till nos mostra a grandiosidade e a vulgaridade do homem, que junta corpo, alma e consciência na ação de inventar o sonho. Sonho este proporcionado pelo SESC que está mais uma, duas, três...vinte vezes de parabéns pela iniciativa e pela primorosa e qualificada grade de programação do 5º Festival Palco Giratório.
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 24 de maio de 2010.
Publicado originalmente no Blog Válvula de Escape em 24 de maio de 2010.
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