sábado, 8 de fevereiro de 2020

DE LA MANCHA - O CAVALEIRO TRAPALHÃO (RS)




ADAPTAÇÃO LITERÁRIA IRRETOCÁVEL EM TEMPOS DE CENSURA AOS LIVROS

por Diego Ferreira*

ESPECIAL PORTO VERÃO ALEGRE 2020



Resgatar a obra de Cervantes e trazer a tona questões intrínsecas contidas em Dom Quixote já é um grande mérito na nova peça da Rococó Produções. Enxergamos no palco um espetáculo esteticamente bem apurado e politicamente bastante estruturado, apesar da produção ser dirigida aos pequenos percebo um discurso político bem claro e definido. O espetáculo se utiliza de metáforas e humor e não fica em cima do muro, pelo contrário, faz uma reflexão inteligente sobre o momento atual que nosso país passa. A tarefa não é nada fácil de adaptar a obra de Miguel de Cervantes com mais de 400 anos e transpor a narrativa aos dias de hoje, mas a dramaturgia de Guilherme Ferrêra vence a dificuldade e consegue um verdadeiro milagre pois a adaptação por si já é algo difícil, mas nesse caso, trata-se de uma versão para a cena e com apenas dois atores e pelo resultado final conseguimos ter o cerne da obra de Cervantes viva e pulsante. "De la Mancha - o cavaleiro trapalhão" é um espetáculo que explora o campo da teatralidade e do jogo cênico. A teatralidade funciona no espetáculo como um processo no qual os atores modificam a perspectiva das coisas afim de obrigar o espectador a 'vê-las de maneira diferente'. Ela implica a existência de uma defasagem entre a vida e a cena, entre a ação natural e a ação teatralizada. A dualidade cênica proposta pelos dois atores é calcada nas convenções do teatro épico proposto por Brecht onde a todo o momento o jogo é construído e destruído afim de quebrar a quarta parede junto ao espectador e isso imprime no espetáculo um ritmo que não anestesia o espectador, pelo contrário, o público se conserva intelectualmente capaz de assumir o que é mostrado no palco, ou seja, uma postura crítica em relação ao trabalho e sobre o que o ocorre na sociedade atual. Confesso que quando assisti ao espetáculo pensei sobre qual o alcance que teria junto ao público infanto-juvenil devido a transposição da obra junto a um forte apelo político ( eu sinceramente amei todas as críticas contidas no espetáculo relacionadas ao atual governo pelo o que eu defendo e acredito enquanto artista e cidadão), porém fiquei pensando que em tempos de censura, um espetáculo como esse pode ser uma faca de dois gumes, pois existe uma forte patrulha ideológica e fiz o exercício de imaginar "De la mancha" sendo apresentado dentro de uma escola ou feira de livro onde o público é mais heterogêneo, e através disso imaginar a reação das plateias que são a favor do governo atual, fiquei curioso de saber qual seria a reação delas frente a obra apresentada. Por outro lado, justamente pelo momento que vivemos temos que falar sobre política(s), apartidária, mas é necessário chegar a estas plateias, muitas vezes pouco habituadas a estes temas, e neste sentido esta produção é ideal, pois trata de política sem ser didático, com humor e principalmente não mascara a complexidade que é se posicionar hoje.  
No palco não há bons nem maus, não há capitalistas versus comunistas – antes se levam reflexões para cima do palco, olhando a forma como vivemos 
e nos relacionamos em sociedade e, com preocupação, a forma como vêm aumentando os discursos nacionalistas. E hoje o que precisamos é justamente uma responsabilização individual perante o que nos rodeia. As soluções do futuro ainda não 
as pensámos, são as crianças 
que as vão encontrar. "De la mancha" 
é literalmente para elas e para todos nós que sonhamos com dias melhores. Das questões estéticas o espetáculo é irretocável pois parte do texto e direção primorosa de Guilherme Ferrêra, a atuação literalmente épica de Ferrêra e Henrique Gonçalves que é de uma precisão e preciosidade, de um modo artesanal e ético de encarar a profissão, e percebo que nos últimos anos esta dupla tem encarado grande desafios e a cada novo trabalho somos surpreendidos e arrebatados por suas criações. Aplausos a toda equipe técnica do trabalho pois os elementos da cena estão todos jogando na mesma sintonia. A trilha sonora pulsante e caliente, a iluminação com precisão e novas possibilidades de texturas na cena, o funcional e belo figurino, assim como todos os adereços e o cenário que ambientam o espaço da ação. Portanto, diante de tudo isso, e em tempos de censura de obras literárias, "De la mancha - o cavaleiro trapalhão" é um espetáculo indispensável para quem gosta de literatura, gosta de Cervantes, gosta de bom teatro e quer ir ao teatro e posteriormente dialogar e tecer reflexões sobre a obra apresentada junto ao seu filho. Um grande trabalho!Viva a liberdade de expressão! Viva a literatura e não a censura!


Ficha Técnica

Livremente inspirado na obra de Miguel Cervantes
“Dom Quixote de La Mancha”

Adaptação e Direção: Guilherme Ferrêra
Elenco: Guilherme Ferrêra e Henrique Gonçalves
Trilha Sonora Original: Pedro Borghetti e Guilherme Ceron
Produção Musical: Guilherme Ceron | Toca do Graxaim
Provocação coreográfica: João Raphael de Paula
Iluminação: Roger Santos
Sonoplastia: Vinicius Soares
Figurino: Lúcia Machado
Maquiagem: Suzana Machado
Cenografia: Rococó Produções
Adereços de arame: Jairo Teixeira artesão
Fotografias: Tom Peres
Viodeomaker: Julio Estevan
Identidade Visual: Jéssica Barbosa
Apoio Cultural: Riatitá Flamenco
Assistente de Produção: Alessandra Bier

Produção e Realização: Rococó Produções Artísticas e Culturais



*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado e coordenador do Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.