domingo, 1 de setembro de 2019

INIMIGOS NA CASA DE BONECAS (RS)


TRANSPOSIÇÃO ATUAL DE IBSEN NA CENA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

por Diego Ferreira*


"Inimigos na casa de bonecas" do Projeto Gompa é uma livre transposição para a cena contemporânea dos textos "Um inimigo do povo" e " Uma casa de Bonecas" de Ibsen. Na história atual do Brasil vivemos num tempo de incertezas, retrocessos e todos os dias somos bombardeados com notícias sobre os esquemas de corrupção, manipulação da opinião pública, jogos e armações políticas e as notícias falsas sobre o triste cotidiano que estamos vivenciando. E baseados nestes fatos o projeto consegue encontrar paralelos na obra de Ibsen que ressoam muito na realidade do Brasil pois tanto a obra do autor quanto a dramaturgia criada para o espetáculo chamam a atenção pela sua atualidade ao destacar a preocupação com a fragilidade de um sistema político que muitas vezes se pauta na opinião de massa e no caso de Ibsen muito antes do uso das "fake news". A dramaturgia de Marco Catalão, Pedro Bertoldi e Camila Bauer é efetiva na medida em que consegue encontrar esses pontos de ressonância com a nossa realidade e faz ecoar na cena pautada pela fragmentação, procedimento apropriado para uma dramaturgia que busca uma visão integrada de mundo através de um processamento dialético do conhecimento e que reflete diretamente num modelo experimental da prática cênica,como se verifica na encenação que se apoia no texto, mas tem forte utilização da performance, dança, música, além de forte apelo estético. A dramaturgia ainda se pauta no procedimento da revelação das contradições, despedindo-se  da narração linear e do realismo para investir em narrativas que enfatiza o discurso e tensões que estamos vivendo agora. O fragmento em "Inimigos na casa de bonecas" é visto como texto que pode variar no tocante à extensão, gênero ou tipo de linguagem cênica, funcionando como "unidades em si", onde são apresentados minidramas, imagens, cenas alegóricas e metafóricas e visões que unificam a obra de Ibsen ao Brasil. Com isso a dramaturgia do espetáculo é forte pois torna-se um produtor de conteúdos, abrindo-se a subjetividades do espectador, pois se assistirmos ao espetáculo com a expectativa de entendimento de uma linha de tempo linear, ou até mesmo buscar encontrar o cerne do drama de Ibsen talvez ocorra uma frustração, pois a lógica aqui é outra, na minha visão o texto de Ibsen é utilizado apenas como pretexto e mola propulsora para enfocar uma série de conflitos éticos e divergências políticas que movem tanto nosso país como a dramaturgia do autor noruegues. 
No que tange a encenação de Camila Bauer, o espetáculo parte de cruzamentos das diferentes artes do espetáculo e tem forte apelo estético se pautando na performance, fisicalidade, música, projeções e iluminação, assim como os figurinos e mascaras que com suas cores e texturas conseguem expandir o campo de fruição. Assim como a criação sonora de RosaCosta que sempre é efetiva e dialoga diretamente com a obra.
Destaque para o elenco de peso que o projeto conseguiu reunir encabeçado por Sandra Dani, Nelson Diniz, Liane Venturella, Lauro Ramalho, Janaína Pelizzon, Fabiane Severo (que com sua presença física cria subjetividades e atemporalidades na obra, cavando espaços para manifestar o que palavras não dão conta), Alvaro RosaCosta e Pedro Bertoldi destacando os dois últimos que com propriedade colocam em cena relatos fortes sobre temas atuais, mas todo o elenco é coeso e consegue colocar em cena toda a provocação estética e que possibilita diferentes camadas de leituras dentro de um contexto contemporâneo de proposição teatral, mantendo a coerência que a encenadora Camila Bauer vem desenvolvendo ao longo dos anos.

Ficha técnica
Elenco:

Sandra Dani

Janaina Pelizzon

Nelson Diniz

Liane Venturella

Lauro Ramalho

Álvaro RosaCosta

Fabiane Severo

Pedro Bertoldi

Direção: Camila Bauer

Dramaturgia: Marco Catalão, Pedro Bertoldi e Camila Bauer, a partir das obras Uma Casa de Bonecas e O Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen (tradução Leonardo Pinto Silva), em colaboração com o elenco.

Direção coreográfica: Carlota Albuquerque            

Composição e desenho sonoro: Álvaro RosaCosta

Iluminação e videografia: Ricardo Vivian

Cenografia: Elcio Rossini

Figurinos e maquiagem: Liane Venturella

Desenhos e pinturas figurino: Lipe Albuquerque

Criação e confecção de máscaras: Fábio Cuelli

Mídias sociais e criação de memes em vídeo: Laura Hickmann

Assessoria de imprensa: Lauro Ramalho

Arte gráfica: Jéssica Barbosa

Fotografia: Adriana Marchiori

Realização e produção:
Projeto Gompa


*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.