sábado, 17 de agosto de 2019

2068 (RS)


SUSPENSÃO DO COTIDIANO EM ESPETÁCULO RIGOROSO



por Diego Ferreira*

"2068" é o novo espetáculo do Grupo Máscara Encena e assim como seu excepcional trabalho anterior "Imobilhados" arrebata o espectador pelo alto rigor técnico e estético de suas produções. Um espetáculo intenso, poético e necessário na atual cena gaúcha. Destaco a importância da máscara enquanto elemento potencializador de processos criativos para a cena no teatro contemporâneo, que ultrapassa em muito uma visão utilitária do objeto-máscara, como mero mecanismo de revivescência de tradições teatrais deslocadas de seu contexto sociocultural, e promulga uma forma de pensar-fazer teatro que se ousa chamar aqui de máscara expressiva (pois é muito mais amplo que isso), isto é, um pensar sobre a máscara como lugar de metamorfoses e hibridismos cênicos. Mas mais do que isso, o uso de uma máscara, representa a utilização de uma corporalidade que o jogo com a máscara exige, implicando o uso de pura técnica, e "2068" parte um princípio de composição-colagem do personagem teatral a partir das máscaras que nele coexistem e que correspondem às múltiplas facetas de uma personalidade moderna fragmentada, nos questionando se ainda é possível sonhar num mundo distópico, a qual a arte não busca mais a harmonia a não ser através da dissonância. A máscara revela um corpo orgânico, em sua percepção espetacular, isto é, ao cobrir o rosto, o indivíduo vê-se obrigado a comunicar-se e expressar-se com todo o seu corpo, garantindo-lhe uma consciência mais concreta dos elementos imateriais da cena que estão sob seu domínio. Com seu "2068" o Máscara Encena alcança uma dimensão essencial do jogo teatral, que é profundamente poética, onirica, metafórica e política pois através de uma temporalidade futura dialoga com a nossa atualidade através de temas como a liberdade, a violência, o preconceito, porém a experiência provocada não é nos dada em nenhum momento, precisamos estar abertos e aptos a tecer nossas próprias experiências a partir do belo material que o espetáculo nos dá, são pequenas histórias suspensas no ar, pequenos espaços sutis para que possamos dialogar através do nosso olhar. 
A direção de Liane Venturella é de extrema importância, pois revela que tem propriedade para extrair do objeto-máscara toda a humanidade que os seres inanimados ganham no palco. Somos embriagados com a vida que estes personagens ganham em cena e percebemos cada pequeno movimento, cada gesto e toda a carga estética que o trabalho propõe graças ao olhar criterioso de uma direção que amarra muito bem todos os elementos da obra que assistimos. O elenco formado por Alexandre Borin, Camila Vergara, Fábio Cuelli e Mariana Rosa são os grandes responsáveis por suspender o nosso duro cotidiano durante 60 minutos e nos levar a outros mundos, outros espaços onde ainda é possível sonhar sim, pois através dos seus corpos expressivos é possível tornar o sonho realidade diante dos nossos olhos. O elenco consegue literalmente se multiplicar em cena e dar vida a uma gama de personagens que muitas vezes precisei piscar para me certificar de que tais seres não eram reais, pois através dos corpos dos atores, os personagens ganham vida e nos fazem acreditar nas suas vidas e suas narrativas sobre atemporalidades.  
A produção opera verdadeiro milagre no pequeno palco do Instituto Ling com cenário quase nulo, porém com uma iluminação impecável de Fabiana Santos que cria espaços e texturas que trazem uma certa frieza no que tange ao confinamento das personagens, auxiliada pelas texturas e cores dos belos figurinos e pela excelente trilha sonora de Caio Amon, que cria uma narrativa sonora que guia o espectador na dramaturgia do espetáculo. 
Mais uma grande estreia nos palcos gaúchos, num ano nebuloso, mas que graças aos artistas da cidade tem nos agraciados com ricas experiências teatrais. 

Direção: Liane Venturella
Dramaturgia: Máscara EnCena e Liane Venturella
Elenco: Alexandre Borin, Camila Vergara, Fábio Cuelli e Mariana Rosa
Trilha Sonora Original: Caio Amon
Iluminação e Operação de Luz: Fabiana Santos
Operação de Som: Vitório Azevedo
Máscaras: Fábio Cuelli
Bonecos: Rita Spier
Cenografia: Máscara EnCena
Figurino: Liane Venturella
Confecção de Figurinos: Naray Pereira
Direção de Produção: Camila Vergara
Produção e Idealização: Máscara EnCena


*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle.