SR CLANDESTINO:
Caminhos movediços entre o caos e a esperança
Por Diego Ferreira*
O que define a realidade? Essa é apenas uma das tantas provocações que o espetáculo Sr. Clandestino da Khaos Cênica se propõe a refletir. A performance constrói figuras dramáticas não-lineares ambientadas num espaço anárquico e distópico. Na contemporaneidade os textos teatrais têm levado o espectador por zonas desconfortáveis, revestidas por camadas ficcionais, com vozes múltiplas e fragmentadas, característica de uma estrutura contemporânea onde a própria noção de texto é confrontada. Na performatividade textual há um deslocamento da figura dramática, que se configura em uma espécie de mixagem, ora monólogos ora instâncias discursivas. A estrutura do espetáculo se pauta num jogo abstrato, um mosaico no qual as linhas da forma e do conteúdo se movimentam constantemente criando outros desenhos textuais para uma intriga dramática até então já conhecida. É interessante ver uma característica emblemática no texto de Denisson, que mantém alguns elementos clássicos em um texto com níveis performativos. Identifica-se com rapidez, por exemplo, as figuras clássicas, como Sr. Clandestino, uma espécie de anti-herói do caos, e a figura da Párode, um andróide, figura virtual, mas que faz todo o contraponto as ações e discurso do Sr. Clandestino, tornando o texto polifônico e descentrado, sem que uma única voz (ou figura) conduza a história do início ao fim. A meu ver os graus de performatividade textual se desenha nas estratégias de criação do mundo estético e distópico pela qual o dramaturgo desestabiliza o espectador e faz com que este perceba a sua própria posição desconfortável em relação ao texto performativo e a narrativa proposta pelo espetáculo. Sobre este aspecto, é necessário sublinhar a participação do espectador. Para elucidar a posição de desconforto do espectador, utilizarei os conceitos de Roland Barthes quando define dois tipos de textos: texto de prazer e texto de fruição. Nesse sentido, Barthes define: Texto de prazer é aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura e texto de fruição é aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta, faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. O texto de fruição, portanto, desconforta o espectador. Coloca-o em crise com a própria linguagem, instiga-o e leva-o por caminhos movediços. Os significados passeiam, transportam o leitor a lugares instáveis. A cada momento novas possibilidades emergem e cabe ao leitor à decisão de fixa-las ou não. Por isso tomo empreitada essa definição do Barthes para cunhar o espetáculo Sr. Clandestino como um “teatro de fruição”, onde a narrativa e os elementos estéticos possuem uma pulsão própria, onde os significados dificilmente convergem em um único eixo, diferentemente da lógica coerente entre significado e significante. Diante disso, outro possível ponto de observação na construção dramatúrgica do espetáculo é que no texto teatral aristotélico o conflito se desenvolve em uma escrita representacional, centrada principalmente no acontecimento ficcional. Nos textos teatrais que apresentam elementos performativos a própria estrutura linguística é colocada em jogo, criando tensões entre significado-significante e consequentemente desestabilizando o espectador. Em outras palavras, isso acontece pois: assim como todos os elementos do teatro, a linguagem passa por uma dessemantização. O que se visa não é o diálogo, mas multiplicidade de vozes, o que é muito presente em Sr. Clandestino. Além de todas as características textuais, o espetáculo tem forte apelo estético a começar pelo cenário que é composto por um kart, uma espécie de maquinaria teatral que além de transportar o Sr. Clandestino por seus caminhos movediços, serve para guardar todos os elementos cenográficos e adereços que vão aparecer ao longo da peça. A caracterização também é ponto alto da produção, destaque para as lentes de contato que o ator usa que o coloca em outra dimensão, assim como o figurino que além de bonito é funcional. Ressalto também a paisagem sonora criada por Rodrigo Ferreira que consegue concatenar a polifônica das vozes da Párode até a trilha que é eficiente. Sr. Clandestino é uma produção que chama atenção por toda a parafernália que coloca em cena, pela atuação segura de Denisson Gargione e também através da excelente dramaturgia que faz refletir sobre temas de extrema importância para o mundo.
Ficha Técnica:
ELENCO & CENOGRAFIA
Denisson Beretta Gargione
APOIO CENOTÉCNICO
Lauren Hartz
Marcos Cardoso
Edson Dias Gargione
APOIO ELETROTÉCNICO
Rodrigo Ferreira
FIGURINOS
Paola Zanette
FOTOGRAFIA
Lauren Hartz
EQUIPE TÉCNICA
Gabriel Gonçalves
Jean Carlo Pires
Duda Marx
Criação de Luz
Marcos Cardoso
TRILHA SONORA
MÚSICA
Rodrigo Ferreira
TROMPETE
Gian Becker
VOZES
Lauren Hartz
Antônio Padeiro
Gabi Barthes
DIREÇÃO
Marcos Cardoso
CONCEPÇÃO & DRAMATURGIA
Denisson Beretta Gargione
*Diego Ferreira é
Pós- Graduando em História e Cultura Afro-Brasileira. Graduado em Teatro na
UERGS/2009. Cursou Letras/FAPA 2002. Dramaturgo, Diretor, Crítico Teatral e
Professor de Teatro. Editor de Conteúdo e Colunista da Revista BRASA. Integrante
do CEN – Coletivo de Escritores Negros. Coordenador do Núcleo de
Dramaturgia RS (@nucleodedramaturgia). Mediador dos debates do 15º
Festival Palco Giratório Sesc-Rs 2021. Curador Local do 18º Festival
Palco Giratório Sesc RS 2024. Curador local do 28º Porto
Alegre em Cena – Festival Internacional de Teatro promovido pela Prefeitura
Municipal de Porto Alegre. Crítico de Teatro do Olhares da Cena (@olharesdacena), portal que faz uma cobertura
crítica e da memória do teatro gaúcho há 15 anos e responsável por produzir o
Prêmio Olhares da Cena que todos os anos reconhece os artistas da cidade e que
em 2021 foi indicado no Prêmio Açoriano
de Teatro Adulto na categoria Ação Formativa. Contemplado no Edital
Multilinguagens – Prêmio por Trajetórias/Lei Paulo Gustavo em 2023. Contemplado
no edital Formação e Diversidade nas Culturas da Fundação Marcopolo com
o projeto “Três Tempos para a Dramaturgia negra no RS: Formação,
Reflexão e Memória”. Vencedor do Prêmio Açorianos de Teatro Adulto
2021 concedido pela Prefeitura de Porto Alegre na categoria Ação
Periférica com o projeto "Três Tempos para a Dramaturgia Negra no
RS". Integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado
por Diones Camargo. Integrante da GIRADramatúrgica: Grupo de Estudos em
Dramaturgia Negra, coordenado por Carlos Canarin. Crítico da Mostra
CURA – I Mostra de Artes Cênicas Negras de Porto Alegre. Participou do
curso de extensão Estudos em Teatro Negro promovido pela UFBA.
Participou do curso Dramaturgia, Performance e Processos criativos no
teatro contemporâneo com Márcio Abreu (Cia Brasileira de Teatro). Professor
das disciplinas de Expressão Corporal I e II no Unilasalle (Canoas),
Professor no Curso “Desibinição através do Teatro” na Unisinos (São
Leopoldo). Professor do Curso de Formação de Atores no Espaço do
Ator. Foi crítico convidado do Festival de Teatro de Montenegro nas edições
de 2012 e 2014. Em 2013 foi integrante da Comissão do Prêmio Açorianos de
Teatro - Revelação, concedido pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Foi
membro da Comissão Julgadora do 9º Prêmio Nacional de Dramaturgia Carlos
Carvalho, promovido pela Prefeitura de Porto Alegre. Em 2023/2024 integra a
Comissão Julgadora do Prêmio Tibicuera de Teatro Infanto- Juvenil
promovido pela Prefeitura de Porto Alegre. Iniciou a sua trajetória no teatro
em Porto Alegre em 1995, desde então vem aprimorando seus conhecimentos na área
teatral.
Sua dramaturgia “NEGREIROS: HISTÓRIAS QUE
A HISTÓRIA NÃO CONTA” estreou recentemente em Porto Alegre com direção de Igor
Ramos (Grupo Teatral Leva Eu) e está circulando pelo estado através da
circulação financiada pelo edital do governo do estado do RS.