MESA FARTA E A CELEBRAÇÃO DE EXISTÊNCIAS NEGRAS
*por Diego Ferreira - Especial Porto Verão Alegre
Há um excesso de abordagens da cultura negra sob o viés da dor e do racismo, talvez seja essa uma premissa necessária e urgente e "Mesa Farta" do Coletivo Pretagô caminha numa direção oposta ao colocar em cena uma abundância de festividade, de celebração, evidenciando corpos pretos em sua potencialidade de excelência. Entendo "Mesa Farta" como um passo a frente no trabalho performativo do Pretagô, uma maturação e evolução na linguagem e no discurso. Acredito e tenho fé numa arte preta de denúncia, de protesto, de colocar o dedo na ferida, e o próprio coletivo investigou essa possibilidade no seu primeiro trabalho "Qual a diferença entre o charme e o funk?"(2014), que discutia questões sociais sob a perspectiva da arte, de um corpo e discurso preto e politico, falando sobre racismo, afirmatividade, cultura e memória.
E passado alguns anos e alguns trabalhos eis que surge "Mesa Farta" que oferece ao seu público uma mesa posta e farta onde a dor e denúncia cedem o lugar a celebração, a festividade, a dança e a música. E o que isso significa? Que nossas narrativas invibilizadas durante séculos e a tentativa de apagamento das nossas histórias não precisam mais serem evidenciadas? Não exatamente, pois ao assistir "Mesa Farta" minha reflexão é de que a arte preta assim como toda a sociedade está em movimento, e creio que o momento é o de celebrar, de compartilhar, de cantar e dançar, principalmente após uma pandemia e um governo que tinha uma política de destruição contra a comunidade preta e de todos os avanços que conquistamos ao longo dos anos.
Então é chegado o momento da fartura, de colher e compartilhar a alegria, de rebolar até o chão, de brindar e degustar o que há de melhor da vida. E o espetáculo é sobre isso, sobre a mesa, que é o único elemento cenográfico no palco, que fizemos um pacto de repensar quais serão os próximos passos e enquanto refletimos, comemos e dançamos, cantamos e nos divertimos. Entre quadros, cenas isoladas, narrativas entrecortadas e permeadas de um humor sarcástico e perspicaz, o coletivo Pretagô evidencia uma cena explosiva, com quatro corpos pretos que multiplicam através das suas presenças os discursos e narrativas que são agentes de transformações dentro desse processo e momento em que nos encontramos.
A produção marca a retomada do coletivo que durante a pandemia não parou, porém esse trabalho que havia feito apenas duas apresentações presenciais em sua estreia em 2020 retoma agora com folego e vibração, e ao mesmo tempo refletir como um espelho, da cena que reverbera no espectador a beleza e alegria que é ter a pele negra exaltada no palco. E o espetáculo é uma vitrine do sucesso, do poder, da beleza e da vitória colocados a mesa, mesa esta que agora temos o nosso lugar assegurado. Bruno Fernandes, Camila Falcão, Laura Lima e Kyky Rodrigues destilam sensibilidade e colocam seus corpos cheios de presença evidenciando que o corpo em cena por si só, já está carregado de discursos, mas suas narrativas e vozes potencializam ainda mais essa narrativa que contamina a cena. Os quatro atores dirigidos por Thiago Pirajira, um criador e pensador inquieto que eclode a cena com uma encenação carregada de subjetividades e teatralidades e que diz muito sobre a atualidade. Somados a isso temos uma técnica que trabalha a serviço da cena como a trilha original e funcional de João Pedro Cé, Thiago Pirajira e Grupo Pretagô que é mais um forte elemento narrativo da performance. "Mesa Farta" evidencia que o coletivo tem estofo suficiente para criar uma obra que celebra a nossa existência, priorizando os processos, as experiências e os deslocamentos que nos levam de um ponto a outro entendendo que o caminho é subjetivo e diferente para todos, compreendendo as vulnerabilidades no corre nosso de cada dia, mas que mesmo assim precisa e merece ser celebrado, precisa de um lugar ao sol diante de uma mesa farta de momentos de suspensão de um cotidiano que ainda insiste em nos encaixotar, nos classificar, em nos excluir. Que cada vez mais possamos desfrutar de mesas cada vez mais cheias de tudo o que temos direito.
Ficha Técnica
Direção Thiago Pirajira
Elenco Bruno Fernandes, Camila Falcão e Kyky Rodrigues.
Dramaturgia Grupo Pretagô
Trilha sonora original João Pedro Cé, Thiago Piraijra e Grupo Pretagô
Operação de som João Pedro Cé
Figurino Camila Falcão e Mari Falcão
Maquiagem Camila Falcão
Projeções Jana Castoldi
Iluminação Bathista Freire
Cenografia e ambientação Grupo Pretagô
Cenotécnico Rodrigo Shalako
Contrarregra Miguel Rosa
Captação e edição de vídeo Thiago Lazeri
Fotografia, Marca e Cartaz Anelise De Carli
Produção e Realização Grupo Pretagô
Duração 75 minutos
Classificação 14 anos
*Diego Ferreira - Editor do Olhares da Cena. Dramaturgo, Professor e Crítico de Teatro. Graduado em Teatro/UERGS. Curador do 28º Porto Alegre em Cena. Integrante da Comissão Julgadora do 9º Prêmio Nacional de Dramaturgia Carlos Carvalho. Vencedor do Prêmio Açorianos 2021 na categoria Ação Periférica com o projeto "Três tempos para a Dramaturgia Negra no RS."