quarta-feira, 24 de abril de 2019

SOBRE NÓS - CRÍTICA

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O MELHOR DE TCHEKHOV NA CENA CONTEMPORÂNEA

por Diego Ferreira*

"Sobre nós" é um espetáculo que parte dos textos de Anton Tchekhov (" A Gaivota"; "As três irmãs" e "O Jardim das Cerejeiras") e marca a estréia do Coletivo Gaivota, um grupo de jovens artistas originários do Laboratório Cênico Léo Maciel. 
Em Tchekhov temos os climas e atmosferas da cena russa burguesa, a ação dramática e os personagens realistas. Temos também a convenção cênica da quarta parede (convenção que neste caso é detonada, graças a Deus! (sic) ). Trazer o autor para a cena hoje é buscar revelar a sua poesia, e a tentativa de sugerir atmosferas subterrâneas ao texto e ação dramática. Sua narrativa é suave, repleta de nuances e a delicadeza do clima e da intenção. 
Léo Maciel através da sua direção precisa e criativa de "Sobre nós" consegue extrair o melhor de Tchekhov e de sua poesia. O espetáculo é uma grata surpresa neste início de temporada. A começar pela dramaturgia, pautada por fragmentos, visto como texto que pode variar  no tocante a extensão , gênero ou tipo de linguagem cênica. Nesta proposta de cena, eu vejo os fragmentos como "unidades em si" - minidramas, imagens, cenas poéticas e visões. A narrativa se desenrola através destas unidades que são amarradas por relatos pessoais dos atores e de cenas que mantém viva a poesia Tchekhoviana. 
O espetáculo é de uma beleza extraordinária, que nos arrebata desde a entrada na sala até o útimo suspiro dos atores. Tudo está a serviço da estética proposta pela direção que é de trazer o autor a contemporaneidade. Mas creio que Léo Maciel consegue ir além justamente por fazer um contraponto das situações cênicas sem subinhá-las demais, criando atmosferas e contrastes vivos. A cena se torna potencializada através da presença viva e forte do coletivo de atores e de todos os elementos presentes na cena. O cenário e a disposição da platéia auxilia na criação de uma cumplicidade junto ao espectador, assim como os figurinos, maquiagem e cabelos de Valquiria Cardoso que criam um jogo de contrastes entre o novo e o velho, o clássico e o contemporâneo e que torna a cena ainda mais envolvente. Ponto para Valquíria que acerta em cheio nessa estética que transborda na cena uma multiplicidade de signos através das cores, estampas e texturas dos figurinos, assim como a maquiagem. A iluminação de Luciana Tondo e Ricardo Vivian é outro destaque pois dialoga com todos os elementos da cena, traduzindo beleza e criando espaços atemporais no trabalho. Exemplo disso é uma cena que é bela e simples ao mesmo tempo que é a cena"tempo e xícara", onde os atores conseguem extrair sonoplastia de xícaras, colocadas no tempo/espaço da cena e que exprime toda a poesia da encenação.
O elenco está totalmente entregue ao trabalho, conseguiram internalizar todas as influências e referências do autor e direção. Faço uma ressalva ao trabalho da Angela Spiazzi, pois é notável a presença e disponibilidade dos corpos em cena, e isto é possível graças a preparação corporal eficiente. Cada texto, cada palavra, cada gesto está cheio de energia e poesia. Todos estão ótimos em cena, segurando muito bem o espetáculo e para atores que saíram de um Laboratório Cênico, espaço de aprendizagem e experimentação, estão todos num nível profissional avançado. 
Repito que todos os atores estão no mesmo nível, porém Lincoln Speziali e Natalia Lavrati conseguem se destacar pois puxam o foco por ter uma presença cênica, uma energia, uma disponibilidade e aquele olho que faz com que o espectador dialogue diretamente com ambos através de olhares e sutilezas. 
A seleção da trilha sonora seria a única exceção neste trabalho repleto de acertos, pois se pauta entre trilhas e temas que dialogam diretamente com a obra e não chegam a comprometer a cena, mas um exemplo é a cena entre Jaques e Felipe que executam uma belíssima cena, ao som de "Flutua", sendo que a canção não contrapõe a cena, mas sublinha demasiadamente a ação dos dois, beirando ao clichê, mas se esta é a intenção da cena tudo bem, senão poderia evidenciar e valorizar esta bela cena entre os dois atores. 
"Sobre Nós" é um trabalho de afirmação de Léo Maciel, que se coloca entre os melhores encenadores da capital, assim como evidencia uma nova geração de atores, que realizam nesta produção um trabalho que merece ser visto e aplaudido em pé. 
Bravo e viva Tchekov! 

FICHA TÉCNICA:

Direção: Leo Maciel
Preparação corporal/coreografia: Angela Spiazzi
Produção: Jaques Machado
Design de luz: Ricardo Vivian / Luciana Tondo
Técnica de som: Manu Goulart
Figurinos, Maquiagem/Cabelos: Valquiria Cardoso
Arte Gráfica: Jaques Machado / Natalia Lavrati
Elenco: Aline Armani, Felipe Evangelista, Guilherme Fraga, Jaques Machado, Juliana Sixel, Lincoln Speziali, Natalia Lavratti. 

*Diego Ferreira é Graduado em Teatro/UERGS. Escreve comentários críticos no blog Olhares da Cena. É integrante do Grupo de Estudos em Dramaturgia de Porto Alegre coordenado por Diones Camargo. É jurado no Prêmio Olhares da Cena. Foi jurado do Prêmio do Prêmio Açorianos de Teatro em 2013 e 2018. Professor de Teatro na Unisinos e Unilasalle. Diretor do Grupo Skatá de Canoas.